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Estadista que conhece a inanidade do valor se não é acompanhado da inteligencia e sabe quão inutil é conquistar pelas armas se se não conserva pela administração, as constituições do Aragão, de Catalunha e Valencia brotaram, sabias nos dizeres, modelares no respeito pela liberdade, da sua penna prudente e concisa, e a ele, o erudito comentador do Digesto, o avantajado discipulo de Justiniano, são devedores, não só os seus reinos mas os da peninsula inteira, da sintese mais feliz até hoje existente do velho direito tradicional e do renascente direito romano.

Soberano, por fim, que paternalmente quer governar os subditos e gostosamente limita a auctoridade para respeitar direitos; chefe de varios povos, rei de vastas nações que não quer unificar e centralisar em si todo o poder, que de seus vassalos ama a independencia, as tradições e os costumes e antes deseja fortalecer do que diminuir a autonomia administrativa, d'este seu ardente amor pelas regalias populares brotaram inumeros os foraes e cartas dos municipios, a constituição do Conselho dos Cento da cidade de Barcelona e os estatutos dos gremios de artifices de todas as cidades 1.

Por todas estas razões, Jaime I o Conquistador, Jaime 10 Prudente, como o cognominaram os subditos e repete a posteridade, ergue sua fama na Historia como sua alta estatura se erguia, segundo é tradição, entre todos os homens do tempo. Em luta, na puericia, contra poderosos tutores e libertando-se de tal jugo por um acto de energia; comandando na puberdade milhares de soldados e conquistando na juventude extensos e poderosos reinos, tudo n'ele é excepcional, tudo n'ele é gigantesco.

1 Notas II e III in fine.

Na epoca não ha quem o iguale, depois d'ele poucos se lhe comparam. Durante um reinado de mais de meio seculo a sua acção faz-se sentir, como marteladas de Titam, sobre a Europa inteira, e ressoando pelo mundo, vae ecoar até aos degraos dos tronos dos sultões da Babilonia e magnates da Tartaria que lhe enviam embaixadas de homenagem; até aos palacios dos Pontifices que lhe dão lugar nos Concilios; até os mais reconditos lugares, perdidos em terras agarenas, que tremem de pavor ao escu

tar seu nome.

E, contudo, este monarca cuja gloria enalteciam os povos, era, despida a armadura ou retirados os embaixadores que a ele vinham, o mais singelo dos homens, um trovador entre os trovadores, um erudito entre os eruditos, um pae entre seus filhos.

Sentando-se á meza dos comerciantes, ouvindo com atenção as queixas dos pequenos, discutindo nas assembleas com os procuradores dos povos, trabalhando em silencio com os inteligentes, ensinando com paciencia os leigos, era como em sua patria e na sua côrte se mostrava o ilustre auctor dos Costumes de Valencia, da Cronica e do profundo Libre de la sabiesa, o rei que, havendo escrito em testamento, como resumo de seu reinado, a admiravel frase: Deus ama os reis que a seus povos amam, poderia ter entregue, na hora da morte, a bandeira catală-aragonesa a seu filho, repetindo as mesmas palavras com que a havia dado a um d'eles para a conquista das Baleares: «Filho, eu vos entrego a bandeira nossa, antiga do principado de Catalunha, a qual tem um singular privilegio que é mister guardeis bem. O qual privilegio não está falsificado nem improbado: antes é puro, limpo, sem falsificação ou macula alguma, e selado com selo de ouro, e é este: a saber, que nenhuma ocasião em

que a nossa bandeira haja estado em campo algum, jamais foi vencida nem desbaratada.

Depois a Castela deu a Jaime I um emulo no rei Afonso x, o Sabio, que, como legislador, fez para o ocidente da peninsula o que ele para o oriente, e como escritor e estudioso, trovando em castelhano e galego e dedicando se á astrologia e outras ciencias, rodeando-se de poetas e eruditos, fez tanto pela intelectualidade e pela lingua castelhana, qual ele a havia feito pelas catalas; outros povos tiveram soberanos guerreiros, monarcas prudentes, reis democratas; mas a sua obra não foi esquecida, a sua acção não se deixou de sentir, e á sua memoria recorreram os subditos quando oprimidos; o seu exemplo recordaram os vassalos quando decadentes.

Pedro III sentiu bem quanto custa ser filho de um dirigente que nunca obrou em desacordo com a opinião publica. Quando, recolhendo o guante que Conradino de Suabia lhe arremessara do alto do cadafalso, ocupou a Sicilia depois das famosas Vesperas e pretendeu dirigir a politica externa sem consultar a nação, os nobres e os burgueses reunidos em Tarragona fizeram valer os direitos, e, não obtendo justiça ás reclamações, foi invocando a memoria de Jaime I e recordando as antigas regalias e liberdades, tradições democraticas ascendendo até aos tempos goticos, que se uniram para a defesa comum e lançaram as bases dos celeberrimos Privilegios aragoneses, que o monarca seguinte, Afonso III O liberal, havia de sancionar, em 1287, por meio do Privilegio da União, carta magna que relembrando as origens de todo o poder, baseando-o na livre escolha da nação, permitia aos representantes dos estados confederados de Aragão, Catalunha e Valencia, reunidos em côrtes, eleger liberrimamente seus soberanos, dizendo-lhes no acto da coroação: Nós que

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valemos tanto como vós, os hacemos nuestro Rey y Señor, con tal que nos guardeis fueros y libertades y si no, no, ou, segundo outra formula: Nós tan buenos como vós, e que podemos más que vós, tomamos á vós por Rey: con que haya siempre entre nós y vós un que mande más que vós.

E este que mandava mais que o monarca e que estava colocado como arbitro entre o monarca e o seu povo, era o brio de uma nação livre.

Instituição singularissima, sem precedentes na historia, esta formula foi o simbolo, a materialisação da maneira de ser democratica e parlamentar de tres nações que na sua luta pela liberdade administrativa, no seu zelo pela dignidade do cidadão, precederam todas as nações e todos os reinos, mesmo aqueles que, qual a Inglaterra e França, são hoje apresentados modelos de independencia, 'canones de constitucionalismo.

O Aragão foi, no terreno das liberdades politicas, o mentor das nações europeias. Nenhuma qual ele as alcançou tão grandes, nenhuma as defendeu com tanta energia e tão persistentemente!

Vendo em el-rei, como todas as outras nacionalidades ibericas, um chefe livremente escolhido pela nação para exercer a auctoridade e comandar os exercitos, a sua dedicação pela pessoa real era ilimitada, a lealdade dos aragoneses e de todos os espanhoes, para com o monarca confundia-se com o patriotismo, porque o rei simbolisava a Patria, mas, chegando até o heroismo, até á realisação de actos sobrehumanos, ao sacrificio da propria vida e da vida dos seres mais queridos, uma coisa havia para todos os Estados hispanicos, e para o Aragão sin

1 Nota XIII, in fine.

gularmente, considerada insacrificavel: a dignidade propria, os direitos de um povo.

Tendo consentido que aqueles caudilhos, a quem a nação escolhia para a capitanear na luta contra os infieis, detivessem o poder e o transmitissem aos membros de sua familia 1, quando, a partir do seculo xi a monarquia se tornou hereditaria e os filhos dos generaes que, desde Pelayo, levaram as hostes á guerra, começaram, por direito de nascimento, a ser considerados legitimos herdeiros da corôa, os povos peninsulares não esqueceram nunca qual a origem da auctoridade real e, respeitosamente mas sem temor, sabiam fazer sentir, áqueles a quem os unia um contracto sinalagmatico, que a obediencia se encontrava condicionada a uma consideração pelos direitos das classes e, sobretudo, que quem havia conferido o poder o podia tirar.

E assim, ao lado das disposições do Fuero Real, unanimemente admitidas, dizendo: «saibam todos que a vida do rei está confiada á sua guarda e fidelidade; que todos devem trabalhar tanto quanto possivel no aumento em todas as coisas da honra pessoal do rei e da sua soberania, e que ninguem seja bastante ousado para ir por feitos, ditos ou conselhos contra o rei e contra a sua soberania para excitar alguma revolta ou algum tumulto, seja contra o rei, seja contra o reino, tanto na sua terra como fora d'ela, nem para se entender com os seus inimigos e dar-lhes armas, ou ajuda-los de qualquer maneira... »; ao lado dos dictames das Sete Partidas, que recomendavam a veneração pela pessoa real, dizendo: << todos se guardem de o tocar para o matar, o maltratar ou se apoderar da sua pessoa, porque

1 Marina, Ensayo historico, pag. 73 e seg.

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