Imágenes de páginas
PDF
EPUB

Ramon Montaner, lhes tecesse invejavel ditirambo, dizendo: «se os subditos dos nossos reis soubessem quanto os outros são asperos e crueis para com os povos, beijariam a terra que pisam os nossos senho

res ».

Dissolvidas as Côrtes não terminava por isso a acção nacional; a Diputacion del reino composta de oito representantes da assemblea legislativa (dois por cada estament) continuava reunida em Saragoça perpetuamente para velar pelas liberdades publicas e cumprimento das leis, e assim como estas, seguindo as belas tradições visigoticas, só tinham tal caracter depois de haverem sido unanimemente aprovadas nas sessões parlamentares-bastando a oposição de um só braço para que tal aprovação não fosse possivel assim acto algum do poder executivo tinha ante os olhos do povo a força de um acto de autoridade se acompanhado não ia do consentimento, pelo menos tacito, dos oito cidadãos que, de uma reunião a outra, detinham em seu poder a alta representação de toda a nacionalidade.

E se a todas estas particularidades, arquitectadas pelo espirito inventivo de um povo temeroso sempre da tirania, acrescentarmos a singularissima instituição da Justiça teremos traçado o quadro completo dos caracteristicos costumes politicos que dão ao Aragão um lugar á parte na Historia da Europa.

Qual foi a sua origem ninguem o sabe, é provavel que o Justiça, como tantas outras coisas, fosse criação anterior á invasão arabe, mas certa ou não esta hipotese, vemo-lo desde os primeiros tempos do reino-aragonez como a incarnação do que o seu nome significa, materialisada n'um individuo, pertencente á classe dos cavaleiros e infanzones, que presidindo um tribunal, o tribunal del Justicia, se encontra por cima de toda a legislação ordinaria exercendo as

ны

funções que os tempos modernos outorgaram aos Conselhos de Estado e aos Supremos Tribunaes de Justiça, cumprindo uma missão que o povo inglez mais tarde havia de conferir á virtude de uma lei, a Habeas Corpus - lei das garantias individuaes contra os abusos e enganos dos detentores da auctoridade e dirigindo todos os seus actos em ordem a defender os direitos de cada um contra a tirania de todos, os privilegios da nação contra os erros voluntarios ou involuntarios do poder, os bens dos subditos contra as arbitrariedades do fisco, a liberdade dos cidadãos contra os excessos das jurisdicções.

Armado de poder formidavel, tendo uma força militar as suas ordens, auxiliado por dois lugartenientes e podendo reunir em Consilium extraordinarium, para os consultar nos casos dificeis, todos os homens versados nas leis aragonesas, filhos do paiz e amantes das suas liberdades, o Justiça sabia e podia cumprir o seu dever.

Apenas algum cidadão, processado e preso pela justiça ordinaria, temia uma violencia por parte dos seus juizes ou de seus carcereiros e fazia conhecer esse temor, o Justiça de Aragão ali estava, cubrindo-o com a sua protecção, manifestando-o, isto é reclamando-o para si, fazendo-o condusir para uma prisão sua, a carcel de los manifestados, indo, se preciso era, busca-lo ele proprio á frente de seus soldados, e guardando-o em seu poder até que os tribunaes houvessem dictado sentença. A sua intervenção não influia no processo; quando a condenação se dava a acção do Justiça deixava de existir, mas, entretanto, graças a ela, a tortura que fazia parte, como meio de prova dos costumes juridicos de todas as nações, a tortura que, para obrigar os acusados a confessar os crimes, era usada em todos os tribunaes civis e eclesiasticos de aquela epoca e que no fim do

seculo XVIII, em tempo de D. José, ainda era usada em Portugal, nunca no Aragão teve entrada.

E é que onde quer o Justiça estendia a sua jurisdicção ahi floresciam as suas liberdades e os direitos individuaes. Se algum aragonez ou algum estrangeiro residente no Aragão temia ou suspeitava que as sapientissimas leis de aquele reino tivessem sido ou podessem vir a ser violadas a seu desfavor, recorria ao Justiça e este, dando-lhe um salvoconduto por ele assinado, uma firma, punha-o a coberto de tudo e de todos, entanto que ele e o seu alto tribunal examinavam a queixa. Se o queixoso estava processado, o processo era imediatamente suspenso até que o Justiça houvesse visto se em todo o seu decorrer as leis haviam sido respeitadas; se havia sido condenado, a sentença não era executada emquanto o 'Epópos aragonez se não certificasse, por si ou com auxilio sempre temivel para a tirania - do consilium extraordinarium, se os fueros não tinham sido violados. E ai de aquele que, desrespeitando a firma, ousasse fazer violencia sobre o cidadão a quem o Justiça protegia! ai de aquele que ousasse mandar executar a sentença, continuar o processo ou prender o provisionalmente livre! as contas tinham de ser saldadas severamente porque, por mui alta que fosse a magistratura por tal individuo exercida, tinha de responder ante aquele mesmo a quem tinha faltado ao respeito, ante o tribunal do proprio Justiça.

1

Certo é que este elevado cargo, como com persistente insistencia fazem notar alguns historiadores 1, era de nomeação regia e, como tal, o n'ele investido podia aparentemente fazer pender a balança para o lado dos oficiaes de aquele a quem devia favor, mas,

1. Vide: Marquez de Pidal, Felipe II y el reino de Aragon.

por outro lado, o Justiça de Aragão, colocado acima de todas as jurisdições, não podia pessoalmente ser julgado senão pelas Côrtes; ante as Côrtes respondia com a cabeça por todos os seus actos; as Côrtes com os seus quatro braços, com os cavaleiros, seus pares, e os ricos hombres, com o clero e o povo, podiam examinar, uma a uma, todas as suas acções e manda-lo decapitar por causa d'elas, e se não é crivel que o Justiça, a não dar-se circumstancias graves, se atrevesse a opor a sua vontade á d'el·rei, obrando assim como quem está colocado entre nós e vós para que mande más que vós, menos o era que ousasse sequer tornar-se suspeito áqueles que, podendo dispôr de sua vida, eram qual ele consideração incomparavelmente mais importante para homens da rija tempera aragonesa defensores natos das publicas liberdades, fueros e privilegios.

E, efectivamente, cumpridores zelosos do seu mandato, nunca os veremos em conflicto com as Côrtes do Aragão que sempre lhes prodigaram apoio e elogio 1, enquanto que, andados os tempos, veremos o ultimo d'eles subir ao cadafalso, por mandato de um rei, justiçado pelo crime de amar demasiadamente sua patria.

Graças a estes costumes civicos e a estas instituições essencialmente respeitosas da liberdade e somente comparaveis ao republicanismo paternal dos baskos que, já então e desde tempos imemoriaes, viviam sua vida singela em harmonia com leis que Conovas del Castillo mais tarde havia de dizer admiraveis e em tudo dignas de ser aplicadas a toda a Espanha; graças a esta maneira de ser politica só

1 Jeronimo Blancas, Comentarios, pag. 721 e 778 e seg.

igualada pelos euskaros, o nobre povo que a todos os seus soberanos, os senhores de Biscaya, exigia, sob a arvore sagrada de Guernica, o juramento solemne de respeito absoluto pelos velhos foros da nação, e que em volta d'essa mesma arvore discutia os graves problemas de capital importancia politica, de igual modo que seus magistrados só á sombra d'este simbolo material da liberdade de uma vetustissima raça tomavam as graves resoluções e proferiam as sentenças solemnes, graças a esta maneira de ser, diziamos, o Aragão poude ter, enquanto independente, uma feliz existencia historica, e, unidos todos os seus membros pelo ferreo laço do amor, alcançar prodigioso poderio, colossal grandeza.

Os tres reinos da sua corôa, ditosos sob um regime invejavel, amavam a materialisação do que os fazia prosperos, amavam o rei que os amava e isto, dando-lhes brios para todos os esforços e sacrificios, era o segredo das suas vitorias.

Mercê do patriotismo ardente que os caracterisava, os aragoneses, catalães e valencianos, raça vigorosa que dava de si homens como João Blanca Perpiñanes, o emulo de Guzman el bueno, governador de Tarifa, preferindo ver morrer ante seus olhos seu proprio filho e até dar o punhal para que o matassem antes do que entregar aos inimigos a praça de que era alcaide, poderam chegar á pratica de actos colectivos tão sobrehumanos como aquela defesa de Perpignan em que, perecendo de fome, os catalães que defendiam a cidade contra os franceses, como conta um cronista 1, multis diebus nihil praeter mu

1 Lucio Mariano Siculo, De rebus Hispaniae memorabilibus, liv. 18.

« AnteriorContinuar »