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não de maior gloria — das nações ibericas ocidentaes; se com ela viveram Granada e Luiz de Leão, Calderon e Cervantes; se ela deu ás letras castelhanas Hurtado de Mendoza e Francisco Manuel de Mello, os Tacitos peninsulares; se com ela brilharam nas universidades os Arias Barboza, os Marine Siculo, os Nebrija e os Vives; se Dona Lucia Mendrano e Dona Francisca de Nebrija, cultivando as letras latinas segundo o espirito da epoca e explicando os classicos dos tempos de Augusto nas catedras, que honraram, de Salamanca e Alcalá de Henares, mostraram quanto pode a inteligencia da mulher espanhola; e se tudo isto poude existir sem vir acompanhado da vertigem que precipitou no abismo outras nações, naufragadas na corrupção dos seculos XVI e XVII, á ardente fé de nossos antepassados se deve, á tradição de oito seculos de luta em prol da Cruz, ao enraizado que em peitos hispanicos se encontrava a maneira de ser catolico-medieval, e, nem por isso, deixa de ser certo que o movimento do cinque-cento como lhe chamaram os italianos artificial e artificioso, fosse uma reacção paga, funestissima para o mundo.

Ele e só ele; cortando os laços da moral; pondo Petronio e Longo nas mãos dos poderosos; soprando um tufão de sensualismo pela Europa; ostentando a nudez insolente nos quadros e nas estatuas, e resurgindo a amoralidade no seio da sociedade cristă; poude preparar e conceber, materialisando o seu esforço, um Henrique vIII e seus corruptos aulicos.

Ele e só ele, fechando as portas á fantasia; condenando a arte ao oficio de arqueologo; estabelecendo a lei ferrea da simetria para todas as produções artisticas; impondo canones a todas as individualidades; matando e afogando em flôr muitos talentos, e talvez alguns genios, com a imposição arbi

traria de uma erudição anti-estetica; burocratisando a arte, deu lugar ao mau gosto moderno, a epoca sombria dos plagios arquitectonicos, da fantasia acorrentada ao dogmatismo e da indumentaria uniforme.

Ele e só ele, destruindo a obra libertadora do cristianismo e opondo-lhe as formulas pagas, antepondo a materia ao espirito e divinisando a carne, preparou a tirania que, imposta em nome de um desposta ou em nome da multidão, sofrem os povos modernos.

Ele e só ele, por fim, arrancou Christo do trono que ocupava no seio das nações e por isso mesmo, só contra ele, quando a obra parecia estar completa, quando em certos povos os mosteiros eram focos de corrupção e, n'outros, o clero, almiscarado e afeminado, fazia a côrte ás prostitutas dos reis, quando Voltaire, rindo seus sarcasmos, podia dizer: Le bon Dieu pour la canaille! e já se escutava o estrondo das multidões em marcha preparando a tempestade que havia de colocar uma meretriz, simbolisando a Razão, sobre os altares das velhas catedraes saqueadas, se fez ouvir n'uma cela gelida de um cenobio de França a voz misteriosa de uma visão sobrenatural pronunciando ante uma mulher extatica a mistica profecia: Reinarei!

E, contudo, em seu principio, a Renascença apresentando-se como renovação artistica poude enganar até os que o dirigiam e protegiam. Nem os iniciadores de tal movimento podiam prever as consequencias do incendio que por suas mãos ateavam e só a clarividencia de um iluminado, o olfato singular de um homem como o prior de São Marcos de Florença, era suficiente para sentir tudo o que de anti-cristão havia n'aquele neo-paganismo literario que Pico de Mirandula e Lourenço de Medicis, homens piedosos, propagavam e aperfeiçoavam.

E nem sequer, quando posto á sua frente, nas ar

tes plasticas, uma actividade de gigante, qual a de Miguel Angelo, estes principios desenvolveram as suas consequencias até á brutalidade até o indisivel, nem mesmo então a verdade se fez nos espiritos. Certos nus chocaram o animo dos Papas, mas isto foi tudo.

Não houve quem compreendesse que a chamada Renascença era, em tudo, uma reacção contra a Idade Media. Uma reacção contra a sua arte, uma reacção contra a sua literatura, uma reacção contra a sua filosofia e uma reacção contra a sua religião, reacção que, se em todos estes campos, não atingia logo as ultimas consequencias, é porque na arte, indagação do belo, o ideal encontra-se mais facilmente do que na ciencia e na filosofia, mas, uma vez encontrado, faz sentir a sua acção reflexa em todas as esferas da actividade humana, de tal modo que, negados praticamente, em estatuas ou em quadros, os principios fundamentaes da moralidade e do pudor cristão, não é facil nem sequer natural, que taes principios sejam respeitados na teoria e que, chegados os tempos, não apareça um Oscar Wilde a pôr epilogo ao desenvolvimento de uma ideia e de uma escola, dizendo: «não ha obras moraes nem obras imoraes, ha obras bem feitas ou mal feitas e isto é tudo».

O culto da forma e o amor da materia, essencia da Renascença e negação pratica da espiritualidade crista, tinha necessariamente de conduzir a este termo. E assim, enquanto a arte renascente, nascendo erfeita e caindo, ipso facto, n'uma decadencia imea, seguia dentro d'ela, o ciclo da sua evolução e, pre com o o mesmo espirito de perfeição preten

e de materialidade triunfante, recorria ás estas obrigadas do churrigueresco e do rococó, para desde São Pedro de Roma até a cinicamente pagă

Magdalena de Paris, e desde Rafael até David e até Ingres; as letras, partindo da novela picaresca, italiana ou espanhola, e da nimiamente infantil, mas radicalmente voluptuosa, novela pastoril, seguiam o seu caminho até á nobreza, hieratica e fria, como artificial que era, dos Iambos de André Chenier, até a graça senhoril, nem sempre sã, de D. João Valera, até o preciosismo artificioso dos parnasianos e a grosseria por vezes repelente de Zolá e Catule Mendès.

Ao mesmo tempo; como todo este movimento estava saturado do optimismo visionario do homem que, por haver conseguido, com Miguel Angelo, arrojar gigantesca cupula a inverosimil altura e, com Velazquez, transportar a natureza para as telas e pintar a verdade, se supunha omnipotente e senhor do universo; o orgulho dominou os espiritos, inchou as vaidades, e levou a sociedade europeia a dar uma orientação filosofica radicalmente nova ao sentido da vida, a negar a necessidade do sofrimento, a revoltarse contra a dôr, querendo redimir-se de um jugo que a especie humana acatou sempre e que em todos os tempos procurou explicar, dando até a essa interpretação lugar preferente em todas as suas teogonias.

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E assim, ao mesmo tempo que se construiam palacios ostentosos para os grandes da terra, moradas onde, como diz John Ruskin, «todos os prazeres fisicos haviam sido previstos: onde os terraços e as grutas dos jardins, as fontes ejaculantes e os retiros umbrosos convidavam ao somno; onde os vastos salões e os extensos corredores serviam de refugio contra o calor; as janelas bem fechadas e as tapeçarias abrigavam do frio, e a vista se recreava no colorido suave dos frescos ornando esses tetos e essas paredes

1 Stones of Venize, cap. vII.

em que estavam representados os ultimos episodios da luxuria paga », cá fora, na rua, passado o tempo <em que o chão nas residencias dos reis estava cuberto de juncos e em que as tapeçarias, na grande sala do barão, eram levantadas pelo vento», o povo, sentindose cada vez mais distanciado das classes privilegiadas e tomando d'elas a convicção, que praticamente lhe inculcavam, da possibilidade de uma existencia completamente liberta de padecimento, de trabalho e de esforço, exigiam a realisação d'esse ideal sibaritico sem precedentes na historia do mundo, «fazendo ouvir a unisono um rumor de mau agoiro, que havia de explodir finalmente como um trovão, precisamente faz ainda notar o douto catedratico de Oxford 1 no meio das paredes pintadas e das fontes escumantes onde a sensualidade da Renascença atingira, na Europa, o seu paroxismo; pois em Versailles foi onde se ouviu esse grito tão digno de piedade na sua colera e na sua indignação: «a nossa alma está repleta das exprobações desdenhosas do rico e do odio desprezador do orgulhoso!»

E a Renascença que começára por traser á Europa o epicurismo enervante dos antigos povos e das civilisações orientaes; a Renascença que, aproveitando os recursos acumulados por um trabalho de muitos seculos, rodeára os poderosos com todos os requintes de esse luxo que sociedades mais cheias de fé haviam sempre reservado unicamente para Deus; a Renascença que, isolando o rico, o deshumanisou e, desesperando o pobre com insaciavel sede de prazeres, o embruteceu, foi a causa primaria d'essa terrivel questão social cujos problemas espantosos hoje debatem.

Venize, idem, idem.

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