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CAPITULO II

A centralisação do governo

Importado para a Europa ocidental o cenaculo de sofistas bisantinos que a espada de Mahomet dispersára, a sua influencia -- nula entre as povoações semibarbaras do oriente exerceu-se prepotente nas nações catolicas.

Se até então, como já vimos, o estudo da obra classica se não fazia sem perigos para a mentalidade cristă, de ali em diante será a passos agigantados que os povos se precipitarão na antitese do que antes haviam sido.

Encontrando entre os latinos um terreno optimamente disposto para receber todo e qualquer germen de classicismo, foi facil obra para os intelectuaes do imperio grego, a pezar de todos os seus defeitos, cumprirem a missão de paganisadores de que estavam incumbidos.

Scepticos, epicuristas e vivendo vida artificiosa no passado, procurando resuscitar os costumes do que para sempre já se havia ido, do que o cristianismo destruira, os retoricos da velha Bisancio, herdeiros de aquela maneira de ser sui generis da Grecia decadente que já os romanos tanto despresavam nos primeiros tempos do imperio, tinham vicios de sobra para desagradar aos espiritos integralmente formados na cultura cristă, como desagradado haviam em outros tempos aqueles embaixadores que os magnates germanicos enviavam ás margens do Bosforo e que de lá voltavam, inojados de tanta afeminação e decadencia, para lavrar o seu protesto veemente honrado nos curiosissimos relatorios que de taes embaixadas apresentavam a seus senhores e legaram

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á posteridade, mas, cegos os espiritos pela miragem de uma beleza fantasiosamente outorgada a uma epoca que só por vestigios se reconstituia, este facto que inevitavelmente se houvera dado dois seculos antes-n'um periodo de incontestavel superioridade de cultura não se deu então.

O mundo ocidental anciava gulosamente tudo quanto tivesse o cunho do paganismo, e eles apresentando-se-lhe, como realmente eram, quaes representantes de uma civilisação onde a sequencia romana, ligando Augusto a Juliano e este ao ultimo Constantino, nunca se tinha interrompido, satisfaziam plenamente os anhelos de uma sociedade esperando o mentor que a dirigisse seguramente pelos caminhos mais breves de um retorno á cultura dos Cezares.

Tudo quanto de seus labios sahia era dogma. Senhores dos segredos da impecabilidade da forma, que os latinos por longos seculos julgaram haver perdido, só eles podiam seduzir, com as suas perfeitas imitações prosodicas da obra classica, aqueles que, postos os olhos em Virgilio, Ovidio e Homero, em nada se dignavam pousar a vista que não tivesse as formas literarias da antiguidade, e que, satisfeita esta condição, tudo admitiam como tal de ser envolto em brilhantes roupagens. Assim só eles se poderem constituir em dirigentes da inteligencia do seculo xv.

O que fosse essa direção todos os sabem. O aristotelismo e o platonismo, não o que cristianisára Tomaz de Aquino e o que haviam purificado sob as aguas lustraes do batismo os primeiros Padres da Igreja; mas o aristotelismo em toda a sua nudez, com a apologia da escravidão e dos despostas, e o platonismo nem sequer expurgado dos ditirambos ao amor unisexual, foram propostos á admiração das multidões e reinaram sem peias em Padua, em Bolonha e na côrte dos Medicis. A garruleria literaria apoderou-se

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dos talentos que se estiolavam preocupando-se mais com a forma correcta do que com a ideia que queriam expressar, matando em seu espirito, pelo excesso de imitação, toda a originalidade, até ao ponto de, como diz Cezar Cantu, não haver n'eles «nem um lampejo de genio, nem um verdadeiro rasgo de eloquencia quer para chorar as desventuras da epoca, quer para enaltecer dignamente a nova civilisação». E, o que é o peor de tudo, totalmente desprezados por incorretos, por faltos de aticismo, todos os escritores que a Igreja criára em seu seio, de todo se perdeu por algum tempo o fruto de mil annos de trabalho, o que havia constituido um verdadeiro progresso sobre a civilisação pagă; a começar pelas admiraveis paginas de S. Agostinho sobre os direitos do homem; a acabar nos excelentes tratados de S. Tomaz sobre a constituição das sociedades e deveres dos reis.

Em vão um dos verdadeiros e indiscutiveis talentos da epoca, Pico de Mirandula, insurgindo-se contra Hermolao Barbaro que classificava de rudes, sordidos e incultos aos escolasticos, exclama: «Perdiderim ego, inquam, apud Thomam, Joannem Scotum, apud Albertum, meliores annos, tantas vigilias, quibus potuerim in bonis litteris fortasse nonnihil esse?!»Terei eu perdido no estudo de Tomaz, de Scoto e de Alberto Magno os melhores annos, tantas vigilias que dedicadas ás belas letras poderiam talvez dar-me prestigio?! - Em vão, exercendo toda a auetoridade que seu adversario lhe reconhecia, lhe afirma que a celebridade se não alcança nas escolas dos gramaticos, mas onde se reunem os filosofos, onde estão os sabios que não discutem nem se ocupam da mãe Andromaca, dos filhos de Niobe ou outras futilidades como estas, mas das causas do divino e do

1 Cantu, Hist. Univ.— epoca x1, cap. xxxi.

humano. De nada valeram as alegações do homem que, ao lado de Erasmo e de Luiz Vives, constituia uma legitima gloria do seu tempo. Quando muito consegue que Hermolao lhe responda: «Barbaros contra Barbarum defendis ». Passada esta polemica, a Renascença segue a sua marcha, caminho da tirania, caminho do paganismo.

Policiano, um dos retoricos, o mesmo que escrevia a Cassandra Fidel, filosofa e literata veneziana, para lhe dizer que ela, com seu averroismo, estava ao par das Musas, Sibilas e Picias, valendo tanto como as socraticas Diotima e Aspasia, tanto como as helenicas Telesila, Corina, Safo, Anyte, Erinna, Prexina e Cleobolina e mais do que as filhas de Lelio e Hortensio, mais do que Cornelia, a mãe dos Gracos, dirigia-se a Lourenço de Medicis para se lamentar de que a seu filho João-que depois foi o pontifice Leão x lhe desse a mãe a ler os Salmos em vez de outras obras mais puras...

E assim, de regressão em regressão ás epocas anteriores ao cristianismo, chegaremos a vêr estes homens a quem o latim e o grego enlouqueciam, trocando os seus nomes italianos por nomes romanos; celebrando cruentos holocaustos nos bosques; sacrificando bodes nas aras restauradas dos altares de Pan; professando declaradamente doutrinas teurgicas 2; e dedicando os templos recem-construidos, como faz notar John Ruskin 3, não a este ou áquele santo

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Viximus celebres o Hermolae, et post hac vivemus, non in scholis grammaticorum et paedagogiis, sed in philosophorum coronis, in conventibus sapientum, ubi non de matre Andromacha, non de Niobes filiis, atque id genus levibus nugis, sed de humanarum divinarunque rationibus agitur et disputatur.

2 Cantu, Hist. Un., ep. xIII, cap. XXI; e Guicciardini, L' Histoire d'Italie.

Ruskin, Stones of Venize, cap. x.

como é natural tratando-se de igrejas cristãs- mas á memoria de tal ou qual vulto historico; adornando as fachadas das casas de Deus, não com simbolos religiosos, mas, qual sucede em Veneza, na igreja de << Santa Maria Fermosa», com a estatua do almirante Vincenzo Capello, «colocada exactamente no lugar que em São Marcos ocupa a imagem do Cristo », ou, qual se pode ver em «Santa Maria Zobenigo », com musculosos anjos « encarregados, por meio de suas trombetas, de levar até ao ceu a fama da familia Barbaro, da qual todos os membros estão representados na igreja, no meio de trofeos militares copiados das armas romanas. »

Vaidade, ambição, ostentação e orgulho ocupou por toda a parte o lugar da humildade, modestia, caridade, desinteresse e outras virtudes cristãs que haviam resplandecido nos tempos anteriores e, revendo-se na sociedade a soma de defeitos e vicios individuaes, em breve as mais baixas paixões caracterisaram uma epoca inaugurada sob os auspicios de tão repugnantissima figura como a do rei de França Luiz XI, e, n'este lodaçal de vergonhas onde só sobresaiam aqueles que, tendo a força de seu lado, podiam pela violencia ou pela astucia erguer-se sobre os corpos calcados de seus semelhantes, rapidamente o trono se levantou sobre tudo quanto até ali havia independentemente existido.

A Espanha não se furtou de todo a este movimento. Até á peninsula, em cuja historia literaria e artistica figuram os nomes helenicos, por mais de um conceito respeitaveis, de Demetrio Ducas de Creta, o auxiliar do Cardeal Cisneros na publicação da primeira Biblia poliglota, e Domenico Theotocopuli, o pintor que em telas imorredouras nos deixou gravada, juntamente com o sentimento religioso da Iberia, a vera efigie dos principaes comparsas da epopeia de

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