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Carlos v, chegaram tambem alguns dos representantes da cultura artificiosa, nem sempre rejeitavel, da velha Bisancio, mas mais do que pela acção directa d'estes exilados que em territorio hispanico procuraram refugio, e que, adaptando-se ao meio, d'ele receberam muito mais do que deram -- foi pela acção reflexa da pressão por outros exercida no resto da Europa, que as consequencias da conquista de Constantinopla se fizeram sentir na patria de Fernando e Izabel.

Já vimos que, por ser epoca de transição, foram calamitosos os ultimos tempos do reinado de Henrique IV de Castela.

Jogava-se a ultima partida decisiva entre a agonisante Idade Media e a incipiente Renascença, e o espirito de aquela opunha-se ao de esta em convulsivo esforço: simpaticamente no Aragão onde a favor do principe de Viana se levantava a bandeira das liberdades nacionaes de Catalunha e Navarra, quasi repulsivamente em Castela onde, contra os ultimos representantes da dinastia que a punhaladas alcançara o trono, se conjuravam somente interesses pouco nobres, odios pessoaes, intrigas vis.

O rancor dos grandes ia, como já indicamos, até o extremo de penetrar os segredos da alcova real para atribuir a Beltrão de la Cueva a paternidade da filha da mulher do quarto Henrique, e crescendo em ousadia á medida que no soberano aumentava a fraqueza de animo, atingia desaforo nunca visto colocando em Avila, sobre a cabeça do principe D. Alonso, a coroa real arrancada a uma estatua del rei, e derribando entre doestos, a voz de um pregoeiro, a regia efigie previamente desataviada de manto, cetro, esporas e todas as insignias da realesa e da qualidade de cavaleiro.

Pouco faltou para que, qual na Inglaterra, a no

breza e o povo, aliados, vencessem o rei impondo-lhe a sua vontade representada pelas Côrtes.

Se assim houvesse sucedido é provavel que, como na parlamentaria Albion, os dois braços, o aristocrata e o popular, tivessem tomado tal desenvolvimento que em nada menos que duas Camaras, se quisessem constituir; mas, com esta ou aquela forma, com mais ou menos originalidade, o espirito da Idade Media, sempre como na Grã-Bretanha, houvera subsistido, e isto foi o que se não deu.

Era demasiado tarde para isso. De longa data vinham-se notando infiltrações cezaristas no espirito peninsular e se as tentativas brutaes, qual a de Pedro o cruel, para estabelecer a monarquia absoluta na Espanha, fazendo tábua rasa de todos os previlegios e prerogativas populares, não tinham dado, por prematuras, o resultado apetecido, provocando pelo contrario saudaveis reacções, não é menos certo que tudo se encaminhava para uma apoteose do Digesto a substituir o Liber Judicum, e que, tendo servido as Sete Partidas de Afonso o sabio e as Leis de Jaime I de Aragão como de ponto intermedio entre a legislação tradicional e aquela que os juristas sonhavam restaurar, proximos deviam estar os tempos em que ás tão inumeraveis como prudentes restrições postas pelo espirito do cristianismo á auctoridade real se opozessem essas maximas romanas que, dando á vontade dos principes a força de leis, criaram no mundo moderno a angustiosa incerteza dos povos europeus dependentes e á mercê quer do capricho de monarcas que, legalmente omnipotentes, se dizem materialisação do Estado, quer das veleidades de parlamentos que, como o inglez, tendo auctoridade para legislar sobre tudo, só não podem fazer, segundo a formula tradicional, .. « que um homem seja uma mulher ».

Os esforços de aqueles que na Castela e no Ara

gão trabalhavam pelo triunfo da causa que constituiu, em Portugal, a razão de ser da vida de João das Regras, só esperavam que suas aspirações se materialisassem n'uma vontade de ferro ocupando o trono e isto foi o que se deu com a irmã de Henrique Iv.

Izabel de Castela, princesa cheia de ideias mui rigidas sobre a extensão da auctoridade real, encarnação dos antigos preconceitos de alguns monarcas castelhanos agravados pelas renascentes ideias e teorias absolutistas, foi, ao mesmo tempo que a executora dos desejos dos cultores da jurisprudencia romana, o dique oposto aos designios do clero, da nobreza e do povo sublevados em defeza de seculares previlegios; o obstaculo impeditivo da logica conclusão, que dadas estas sublevações, os factos preludia

vam.

Senhora de excelsas virtudes, de inteligencia superior e ilustração vasta qual convinha a uma discipula d'aquele veneravel Nebrija a quem Erasmo chamou o Nestor dos gramaticos, a esposa de Fernando de Aragão, com tão grandes atractivos pessoaes, parecia escolhida, exactamente como D. João I de Portugal, para graças ao seu prestigio - tornar mais suave, menos sensivel, a implantação da monarquia absoluta.

Eleita, de igual modo que o Mestre de Aviz, pela vontade nacional, estava destinada a dar a essa mesma vontade o golpe de graça; escolhida pela rebelião, a ela havia de caber em sorte a missão de implantar para muitos seculos a disciplina em Espa

nha.

Quando, pela morte de D. Alonso, os nobres e o povo, tudo quanto era rebelde, procurou alguem cuja dignidade se podesse opôr á d'el-rei, e á falta de um homem, lançou mão de Izabel, esta, prestando-se a uma aventura que lhe assegurava a coroa, não deixou

repetir em sua presença as scenas afrontosas de Avila

a sua dignidade de futura rainha não o consentia - mas fazendo-se proclamar unica e legitima herdeira do trono, em detrimento d'aquela a quem os castelhanos chamaram Joana la beltraneja, poude alcançar o poder que lhe havia de servir precisamente para destruir de aqueles que a taes alturas a

tinham levantado 1.

Estava escrito, sem duvida, que nos paizes latinos o braço del rei, como lhe chama Zurita, se havia de erguer omnimodo sobre todos os outros, e assim foi. Em Espanha e Portugal, como na França, o trono levantava-se gradualmente sobre a nação á medida que avançava a Renascença.

Com este poder, suavisado em grande parte pelas incontestaveis virtudes, qualidades e dotes de espirito dos principaes vultos das dinastias joanina e austriaca, que então reinaram sobre Portugal e Espanha, coincidiram muitas glorias; tornado toleravel pelo paternal afecto de alguns reis e pela empreendedora actividade de todos, envolveu-o um esplendor que ofusca, uma aureola que deslumbra; mas, quando esse deslumbramento passou, quando esse esplendor desapareceu, quando feneceu essa gloria, e de toda a apoteose só ficou o absolutismo de reis, grandes ao modo dos poços que quanto mais terra lhes tiram maiores são; quando, perdida a posição privilegiada a que a nação, juntamente com o trono, havia chegado, só restou o orgulho de monarcas tanto mais exigentes de veneração quanto menos dignos eram

1 Vide: Antonio de la Escosura y Hervia, Juicio critico del feudalismo en España, pag. 40, 53, 72, 80, 90 e notas d'estas pag. - Prescott, History of the Reign of Ferdinand and Izabella, Lafuente, Hist. gen. de España, tom. Ix.

vol. 11.

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d'ela, a verdade fez-se nas inteligencias, a luz brilhou, e com ela se viu o que havia no fundo de tanta grandeza.

No entanto os principios d'este movimento assinalam-se por uma corrente expansionista e centralisadora que, procurando alargar as fronteiras do imperio hispanico tanto quanto possivel, tende, em justa reciprocidade, por apertar cada vez mais em volta do solio real, constituido em centro de gravitação, todos os elementos constituitivos da patria espanhola.

Lenta mas seguramente estas duas correntes paralelas vão fazendo caminho, e, vinculadas a todas as vontades, depois do casamento de Izabel de Castela com Fernando v, herdeiro da corôa de Aragão pela desditosa morte do infeliz principe de Viana, as ideias de unificação peninsular, que tanto haviam preocupado anteriores monarcas castelhanos, entram n'um caminho de realisação.

Estavam na maneira de ser da epoca. Já não era a corôa de Castela que se queria sobrepôr a todas as outras; era a ideia da união iberica radicada nós espiritos.

D. Afonso de Portugal, casando-se com a filha preterida de Henrique iv e reclamando para si o cetro castelhano; recorrendo ás armas para defender o que conceituava seus direitos, os direitos que proceres e prelados espanhoes como o Marquez de Vilhena, o duque de Arevalo, o marquez de Cadiz, o conde de Plasencia, o bispo de Burgos, D. Luiz de Acuña e o Arcebispo de Toledo, Alonso Carillo, lhe reconheciam, não era simplesmente um marido zeloso dos bens de sua mulher. Concedendo privilegios aos Senhores de Bertiandos com a assinatura: Afonso, rei de Castela, Portugal e Aragão; assinando de igual modo outros documentos e fazendo-se reconhecer, mediante o tratado de Senlis de 8 de Setembro

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