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desapareceu, mas que, como essa brisa que se levanta de pronto no meio das calmas tardes de estio e, refrescando por um segundo o viandante, lhe dá forças para proseguir no caminho, foi suficiente para suster durante um seculo a marcha de uma decadencia.

Os costumes que annos depois haviam de tornar a corromper-se, purificam-se notavelmente por um momento. Não se viram por algum tempo os prelados intrigantes e ambiciosos dos tempos de Henrique Iv; os bispos de filhos bastardos do reinado de Fernando e Izabel e os sinistros personagens da Celestina; por um momento deixaram de ser verdadeiras as scenas esgrafiadas por Hurtado de Mendoza na novela picaresca, e em lugar do Picaro Guzmán de Alfarache e dos Rinconete e Cortadillo, fugindo das galés e ejercitando, qual o estalajadeiro da Mancha, la ligereza de sus piés, sutileza de sus manos, haziendo muchos tuertos, requestando muchas viudas, deshaziendo algunas donzellas y engañando á algunos pupilos, aparecem iluminando a Historia de Espanha com a sua aureola de alta espiritualidade todas aquelas asceticas figuras que se nos deparam ao folhear as paginas da autobiografia de Teresa de Jesus, os Pedro de Alcantara, os Avila e tantos outros que, semeando virtudes, favoreciam a liberdade, porque um povo virtuoso será sempre um povo livre.

E, assim, ao esforço dos legistas, teimando sempre, constantemente teimando, em aplicar á peninsula os inadmissiveis principios juridicos das leis romanas, com todos os seus exageros sobre a aucto

1 D. Quixote, cap. III.

ridade omnimoda dos mandantes, veremos responder n'esta epoca, e só n'ela, os que, imbuidos dos principios cristãos, não procuravam soluções para o problema politico nas formulas de Justiniano mas na tradição nacional ou nas admiraveis paginas do tratado De regimine principum do Anjo das Escolas; veremos impugnando o absolutismo os que, dando a Cezar o que é de Cezar e a Deus o que lhe pertence, preferiam, tendo de escolher entre o exemplo de dois passados, recordar a atitude de aqueles que na missão de apostolos fizeram frente aos despostas, a imitar a submissão dos que curvados ante as efigies de Nero as insensavam como divinas.

Assim quando, imitando o que além Pirineus se fazia e começando já perniciosissimas correntes galicanas a infiltrar-se na maneira de ser hispanica para preparar os caminhos a que alguem podesse dizer em Madrid, qual em Paris se dizia, l'Etat c'est moi; quando muitos e muitos aduladores se esforçavam em entoar lisonjas que aos reis cegassem, aparecia o Padre Mariana ensinando a um principe quaes os deveres de um monarca cristão, n'aquela famosissima obra De Rege et Regis institutione, tão duramente atacada por aqueles que aos tiranos aplaudem. E quando o povo mais livre da peninsula, o Aragão, se encontrava já ameaçado na sua independencia e nos seus foros, surgia o mesmo severo escritor traçando na sua Historia de Espanha o maior elogio que se póde tecer a uma comunidade nacional, louvando precisamente aquilo que se queria fazer desaparecer: « tienen los de Aragon y usan de leyes y fueros muy diferentes de los demás pueblos de España, lo más á propósito de conservar la libertad contra el demasiado poder de los Reyes, para que con la lozania no degenere y se mude em tirania; por tener entendido, como és la verdad, que de pe

queños principios se suele perder el derecho de libertad.

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E como estes dizeres e estas doutrinas estavam baseadas no amor pelo Verdade, suprema força libertadora; como atraz dos tribunos que isto proclamavam se encontrava a legião dos que, sem o dizer, o sentiam, dos que, submissos ante a auctoridade, não podiam nunca chegar a ser servís porque a sua submissão tinha uma base muito mais elevada do que o respeito do homem pelo homem, posto que se fundava no respeito do homem pelo amor de Deus, de ahi que taes vozes se elevassem potentissimas, de ahi que se erguessem sem encontrar obstaculos, livres como a aguia ao cruzar os espaços, na sobriedade castelhana do auctor das nobres lições do tratado Del Rey y de la institucion real, encontrando, mais tarde, eco na grandiloquencia lusitana de Antonio Vieira; na energia e ciencia de Francisco Suarez impugnando a doutrina do direito divino, defendida pelo rei de Inglaterra, e proclamando na sua magistral Defensio fidei Catholicae adversus anglicanae sectae errores qual a verdadeira e democratica origem do poder real; na simplicidade e elegancia, por fim, de tantos outros que para tratarem das relações da auctoridade com a liberdade manejaram auctorisadamente a palavra e a a penna em orações e obras que, catalogadas aqui, ocupariam paginas 2.

1 Mariana, Historia de España, cap. IV, liv. 1.
2 Nota I, in fine.

CAPITULO III

As glorias de Castela

Com estes principios da monarquia absoluta, chegados os tempos de recolher o fruto de muitos seculos de preparação, soou a hora de que se visse quanta verdade se encerra na frase evangelica: « « procurarás primeiro o reino de Deus e sua justiça, e o resto vos será dado por acrescimo. »

Seculos de luta, combates incessantes em prol da causa da Cruz, servida des assombradamente, servida desinteressadamente, servida integralmente, tinham adestrado, haviam aguerrido as nacionalidades hispanicas nas grandes emprezas belicas, nas iniciativas ousadas, e foi n'este mesmo aguerrimento, n'esta iniciativa, que se fundou em tempo de Fernando e Izabel a grandeza de Espanha.

Serviu-lhe de apoio a bizarria e a acometividade castelhana, herdeira e continuadora da epopeia catală e aragoneza.

Idos os epicos dias em que os temerarios e inexoraveis almogavares levavam a bandeira da Catalunha e a bandeira do Aragão aos confins do Mediterraneo e do Mar Negro, era mister que os ecos da fama iberica, provocados pelo estrondo dos altos feitos de alguns dos filhos da Espanha, se fizessem continuamente ouvir no mundo, e d'esta dificilima missão se encarregaram os filhos de Pelayo.

Estava já longe o tempo em que os catalães, chamados pelo imperador Androdico, iam, sob as ordens de Roger de Flor, depois de arrancarem a Sicilia aos angevinos e de a anexarem á corôa aragoneza, libertar Constantinopla atacada pelos tartaros e pelos turcos, e alcançar, para a quasi lendaria fi

gura de seu chefe, o titulo de grão-duque da Romania e até a investidura de Cezar, exterminando em duas batalhas os inimigos do imperio grego.

Longe tambem a epoca em que o successor de Roger, o esforçado Berenguer de Etenza e Fernando Ximenez de Arenos, comandando a republica militar catală, que a si propria se chamava « exercito dos francos reinando na Thracia e na Macedoniu », arvoravam a bandeira aragoneza sobre as muralhas de Galipoli - victoriosamente defendida em certa occasião, contra as forças genovezas, comandadas por Antonio Spinola, apenas pelas mulheres catalas que, na ausencia dos homens, a ocupavam.

Longe, por fim, os dias gloriosos em que os almogavares, invadindo a terra helenica, se apoderavam de Atenas, Tebas, Argos, Corinto, Delfos e grande parte da Tessalia, onde por longos annos, feudatarios do rei de Aragão e Sicilia, imperavam os filhos da terra catală e onde deixavam os vestigios da lingua lemosina que ainda hoje n'alguns pontos se encontram 1.

Tudo longe! Como de Roma dizia a poetisa Sulpicia, o Aragão, <qual atleta que triunfa nos jogos olimpicos; ficou unico vencedor no estadio; mas languido e debilitado, teve de consumir por força os seus animos no imovel repouso », e, enquanto este forçado descanso se dava, tocou a vez a Castela de ocupar o seu logar.

E Castela soube-o fazer com maestria, soube-o fazer com brio. Chegada depois das outras nacionalidades ibericas ao termo da sua constituição territorial, não por isso desempenhou menos brilhantemente o papel que lhe estava reservado para depois

1 Ramon Montaner, Chronica de Aragon.

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