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compostas de tudo quanto de mais aguerrido tinham os << tercios castelhanos, flamengos, tudescos e italianos, se não encontrassem divididos pelos dois extremos da peninsula. Divida é esta de gratidão que ainda não está paga.

Catalunha foi a victima expiatoria que, á custa de seu sangue, á custa da vida de seus filhos, permitiu a libertação de Portugal. O ferro que em seu coração se cravou estava reservado, nos planos do Conde-Duque, para o peito português, e, como aquelas victimas muitas vezes desconhecidas que no fundo de um claustro, entre as quatro paredes gelidas de um cenobio, expiam as iniquidades de seu tempo e assim salvam o mundo, segundo o parecer dos mestres da teologia mistica, dos supremos castigos de que diariamente se torna reu, assim o principado catalão desviou sobre si as iras de que Portugal tinha de ser victima.

Das duas nacionalidades ibericas que se levantavam em armas para conquistar a liberdade, uma tinha de perecer para que a outra podesse viver e a Catalunha morreu para que Portugal triunfasse.

Quasi um seculo de agonia lhe custou este sacrificio. Veio logo a questão dinastica, a luta entre Filipe de Borbon e Carlos d'Austria, a guerra da successão á coroa de Espanha que comoveu por tanto tempo toda a Europa, e a Catalunha, que já tomára armas por Carlos, principe de Viana, cujo estandarte simbolisava as suas liberdades e foros, colocou-se, pelas mesmas razões, ao lado do Arquiduque d'Austria contra Castela que seguia o partido do que depois foi Filipe v.

Ao seu lado estavam as duas regiões irmãs: Aragão e Valencia; estava tambem, não com leaes propositos, a coroa de Inglaterra e, com ela, Portugal. Pela frente: a França; isto é: Luiz xiv.

Começou assim uma guerra cruel, desatinada. Por um momento a causa de Carlos d'Austria, e com ela a das liberdades regionaes, esteve a ponto de vencer. O Papa Clemente vi chega a mandar um Nuncio a Barcelona para que o represente na côrte do Arquiduque. Na capital da monarquia, os avós d'aqueles manolos e chisperos que um seculo depois haviam de derramar seu sangue generoso para libertar Madrid do jugo de José Bonaparte, muito tiveram de lutar para poder fazer frente aos tudescos de D. Carlos. A implantação do regimen integralmente absoluto custou muito sangue, mas, por fim, depois da celebre batalha de Almansa, que tantas e tão viçosas folhas cortou ás mais florescentes arvores genealogicas da nobreza portuguêsa, o cezarismo galicano estabeleceu-se na peninsula e, o que se não podia ter conseguido sob Filipe iv, conseguiu-se sob Filipe v, o primeiro rei da funestissima dinastia de Borbon.

E de que maneira se estreou o galicanismo! A 29 de junho de 1707, quando a sorte das armas tinha quasi assegurada a coroa das Espanhas ao neto de Luiz XIV, os reinos de Aragão e Valencia, já submetidos, eram declarados « rebeldes a seu rei e senhor » e castigados com a perda total, absoluta, de seus foros, liberdades e leis privativas. O principe que na côrte de França, de onde vinha, havia podido frequentar a maior escola de absolutismo que possuia a Europa, extranho em absoluto ás tradições ibericas, ignorante da sua historia gloriosa, da historia d'aquelas nobilissimas regiões a quem declarava seu «dominio absoluto » e a quem feria « por estarem compreendidas nos reinos que legitimamente possuia » e em virtude do justo direito de conquista que d'elas fizeram ultimamente as armas » e, ainda, «de ser um dos principaes atributos da soberania a imposição e derogação das leis», não sentia o mais peque

no escrupulo em transplantar definitivamente para a peninsula o centralismo francês, e, voluntariamente surdo aos clamores das victimas e até aos conselhos de seus partidarios, o duque de Montellano, conde de Frigiliana e duque de Medinasidonia, desfez com um só decreto a obra de seculos, apagou por sua inepta vontade o que desde Jaime I ardia com resplandecente luz: as liberdades aragonêsas iluminando o mundo.

Em vão recorreram as duas nações maltratadas ao patrocinio do proprio rei de França Luiz xiv; Quatro annos mais tarde conseguiram os aragonêses que o direito privado das leis de Aragão podesse ser usado nos negocios entre particulares; Valencia nada obteve, nenhuma de suas leis foi restabelecida; nem privadamente nem em publico, civil ou administrativamente, tornou a vigorar o seu direito, negando-seThe até o de petição, até o de recorrer á clemencia regia, pois José Ortiz e Luis Blanquer, que isso fizeram em nome de seus concidadãos foram por tal crime enclausurados no castelo de Pamplona...

Distante, muito distante, estava já o tempo em que os povos hispanicos podiam dizer aos seus reis: e senão, não! Longe, muito longe, a epoca em que os subditos falavam alto e cabeça erguida aos soberanos e, quando estes davam cedula ou carta contra a lei natural ou contra as leis fundamentaes do reino, podiam regeitar essas ordens usando da formula: se obedece, pero no se cumple - nada mais restando ao regio transgressor que reconhecer seu erro, porque como solemnemente afirmam as PARTIDAS: « gran derecho és el que à los otros ha de enderezar é emendar, que lo sepa hacer a si mismo cuando

errare. »

Tudo muito longe! Despresava-se descaradamente o principio tradicional e racional afirmado no

Fuero Juzgo1, reconhecido nas côrtes de Briviesca, confirmado nas Constituições de Catalunha 2, Sete Partidas, Ordenações reaes de Castela, e quantas côrtes se realisaram na peninsula até ao seculo XVI, principio que, como é de razão e justiça, afirma não poderem os reis alterar um ponto das leis constituitivas da monarquia sem, ipso facto, desligarem o povo de toda a obediencia e acatamento a ele devidos como a rei e senhor, e, porque isto se dava, porque isto sucedia, compreenderam os povos ibericos onde a liberdade se tinha refugiado que só nas armas estava a sua esperança e, como os actos de Filipe v vinham dar razão ás afirmações do arquiduque Carlos, a Catalunha redobrou na sua defeza, disposta

a morrer ou a vencer.

Morreu... Mas morreu gloriosamente! Por mais sete annos aqueles heroes, que heroes se lhes pode chamar, fizeram frente á tirania borbonica, não em defeza de Carlos d'Austria, que assim que se viu coroado imperador, ingrato, como os principes soem ser, nunca mais se lembrou de seus esforçados partidarios de Espanha, mas em defeza das suas leis e seu direito que isso, mais do que a vida, prezam os catalães.

Abandonados d'aquele a quem chamavam seu rei; abandonados da Inglaterra que, prometendo sempre auxilios, nunca os enviava, os catalães, podiam repetir o amargurado grito do conceller Felin de Penya que, ante as ruinas de Barcelona, rasgando as vestes senatoriaes, a gramalla que o vestia, clamou: « Oh

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Part.-L. 18, tit. 1. Part. I.

4 Ordenanzas reales de Castilha - tit. xiv, lib. III.

cidade entre todas a mais infeliz! A que estado te reduziu a tua idolatria pelo Arquiduque! Como sofres agora o castigo da justiça de Deus!», mas, antes de entregar-se a estas lamentações jeremiacas, preferiam aqueles bravos defender a todo o preço a rainha do Mediterraneo, dando-se por satisfeitos se a morte lhes poupasse a vergonha da derrota.

Chegou porem o dia em que não foi possivel resistir mais: 11 de setembro de 1714. Depois de um cerco que por quatorze mezes se tinha prolongado, não havia em Barcelona uma casa que não estivesse destruida, um homem que se não encontrasse mais ou menos ferido, uma criatura que não tivesse a prantear alguma dôr. Durante aqueles interminaveis dias de sangue e de gloria, 40:000 granadas e para cima de 99:000 balas de canhão tinham caído como chuva de morte sobre a capital do Principado. Forças já as não havia; meios de resistencia faltavam: a ruina era certa.

Contudo, n'aquele momento supremo, quando nada mais se podia esperar que não fosse uma capitulação honrosa, não pensaram assim os defensores da cidade. Não era para aqueles homens o deixar-se vencer: a morte os podia fazer capitular, os homens não!

Reunidos em conselho, os dirigentes da defeza, depois de ouvirem ardente discurso que lhes dirigiu Rafael de Casanova, conceller en cap, ou presidente do Concelho dos cem, tomam por unanimidade e aclamação as resoluções seguintes, verdadeira sentença de morte que contra si proferiam :

<< Todos os generaes e coroneis que houveram a honra de serem convocados no presente dia, estimulados de sua propria honra, constancia, zelo ao maior serviço do rei e da patria, conhecido o estado da praça, das tropas, do povo e do inimigo, tomam una

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