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nimemente o acordo de que as operações militares devem fundar-se sobre a base inalteravel de que se devem sacrificar as vidas, antes do que admitir qualquer capitulação com o inimigo. >>

Assente esta formula, todos os oficiaes do Arquiduque, de pé, espada erguida e voz alta, fazem ante o Senado solemne juramento de fidelidade até á morte. Admitido este, o Conselho passa á ordem do dia e resolve: «não atender proposição alguma de pacto, capitulação ou promessa do inimigo e persistir na defeza até que não fique sangue para derramar em nenhum dos moradores de Barcelona, para que nunca possa a violencia inimiga triunfar de corações tão generosos, que preferem o sacrificio da vida á vergonhosa escravidão de se vêrem sob o dominio de quem não pode reinar com razão, justiça e equidade, estando cheios de esperança de que a misericordia divina protegerá tanto a sua constancia, que poderão perpetuar nos tempos vindouros a gloria de haverem sido instrumentos da piedade divina para a conservação da liberdade da monarquia de Espanha e para que na fraqueza de tão curto recinto encontre vergonhoso castigo a vaidade de quem só fia em forças humanas a dominação dos povos. »

E não eram apenas palavras, simples palavras, todas estas resoluções. Se alguma coisa expressam estes periodos de uma acta que representa um dos mais notaveis documentos historicos que a antiguidade legou ao futuro é, sem duvida alguma, o valor e brio de peitos generosos que encontram a eloquencia na propria exaltação dos sentimentos e que, como sempre succede, não conseguem atingir com as frazes a alteza do que pensavam, a sublimidade do que sentiam.

Chegado o momento supremo provaram-no exuberantemente. Nem um só dos signatarios faltou á

defeza dos baluartes. Como se fossem para uma d'aquelas graves assembléas em que, desde tempos imemoriaes, a vida municipal da cidade condal era discutida e de onde saíam as sabias determinações da regencia que por seculos a dominou, os senadores do Conselho dos Cem, dirigiram-se para as trincheiras. Foi o seu ultimo acto colectivo e o unico que convinha áquele concilio: só morrendo na luta podia terminar gloriosamente uma vida secular gloriosa.

Rafael de Casanova caminhava á frente de todos; em suas mãos, empunhada com vigor, ostentava-se ondeante a bandeira catalã e barcelonesa, o estandarte de Santa Eulalia, e ante aquela oriflama que representa seculos de independencia e triunfo, os soldados, loucos de entusiasmo, vibrantes de patriotismo, ardentes em energia heroica, lançam-se á mais terrivel das contendas, um contra mil fazem frente ao inimigo e, sem retroceder, sem vacilar, são dizimados pelas balas.

O conceller en cap avança sempre. Seguem-no todos os bravos que o rodeiam, todos os feridos que se podem arrastar. Aclamações de entusiasmo cobrem o troar da artilharia inimiga; os catalães parecem caminhar para a victoria e entretanto é a morte que os vae aniquilando.

Caem fileiras completas de soldados a quem os canhões esquartejam. A fuzilaria, cada vez mais proxima, derrubando, um a um, soldados sobre soldados, vae roubando defensores ás ruinas de uma cidade que já não existe; mas, nem por isso, o fogo cessa; os sobreviventes multiplicam-se; por cada um que cae, luta como dez, luta como cem, como mil cada um dos que fica, e as forças, as ultimas forças da Catalunha, vão sempre respondendo, tiro por tiro, golpe por golpe, ás forças da tirania, ás tropas borbonicas que se aproximavam.

Por fim, é o proprio Rafael de Casanova que cae varado. Por um momento deixa de ondear sobre as cabeças a bandeira sacrosanta que a todos electrisa. Não a abandona por isso o seu portador; caído por terra, aperta-a contra o peito, beija-a n'uma convulsão suprema e só a entrega em mãos seguras, em mãos do alferes-mór Conde de Placencia.

Ao ver caída por terra a insignia por todos idolatrada, muitos se precipitam para a recolher. Jacinto Oliver já lhe tocava quando o de Placencia, veneravel em suas cas, erguido a pezar da idade, se lhe antepõe dizendo: «Eu sou o alferes-mór a quem a cidade confiou, depois do Conceller, a bandeira da sua municipalidade; nem os annos nem a fadiga me impedirão de a levar e de a conservar até morrer ».

Curvaram-se todos ante tanta grandeza; o pendão da Catalunha passou das mãos de Casanova para as suas e, erguida de novo a bandeira, a luta continuou.

Mas estava tudo perdido. Casanova levava para o tumulo o tradicional regionalismo hispanico. O cezarismo, escalando já as ultimas posições catalas, ia vencer e imperar sobre gloriosos destroços fumegantes e amontoados.

Contudo, até o ultimo momento, não deixou de se lhe antepôr a resistencia de peitos esforçados. Batendo-se como soldado, o general Villarroel, um dos nomes aureolados d'aquella inolvidavel jornada, animava os seus a batalhar sem esperança de obter misericordia: « Senhores, filhos e irmãos, não diga a malicia ou a inveja que não somos dignos de ser catalães e filhos legitimos de nossos maiores; pela nossa patria e pela nação espanhola lutamos; hoje é dia de morrer ou vencer. >>

Vencer era impossivel. Todos o compreendiam e por isso, de olhos fechados, á morte se lançavam. Poucas vezes a terrivel ceifeira cortou em tão pouco

tempo tantas victimas. Os combatentes caíam como folhas secas de arvore sacudida pelo vento do outôno. Cada pelotão que avançava era inexoravelmente aniquilado; as muralhas de pedra que a metralha desfazia e que, desmoronando-se com grande estrondo, sepultavam sob seu pó os que as haviam de defender, eram substituidas por muralhas de corpos mortos, de cadaveres ensanguentados onde, mesmo depois de estinta a vida, as balas chocavam, rebo

tavam e cravavam.

Villarroel via tudo isto; poupado pelo fogo, respeitado pelo chumbo, ia-se, pouco a pouco, encontrando só; mas firme e erguido, de olhar sereno e VOZ em que nem o mais leve tremor transparecia, ia animando os sobreviventes, incutindo-lhes animo e dizendo sempre: «Morrer ou vencer! para isso viemos; avancemos sempre!! »

Chegou-lhe porém a vez. Uma bala atingiu-o, derrubou-o para sempre no campo da batalha; a voz que, mais uma vez ia gritar: «Para a frente!» emudeceu e extinguiu-se, e, depois d'ele, os que ficaram em breve foran desaparecendo.

Assim desapareceu, assim foi conquistado pelas armas, a sangue e fogo, o ultimo baluarte que se opunha á França e a Filipe v. Os infaustos successos do seculo XIII repetiam-se no xvIII; a derrota de Muret encontrava sua prolongação na conquista de Barcelona, e a Catalunha, depois da Provença sua irmă, era aniquilada e assolada por aqueles a quem tinha outorgado a luz, por aqueles a quem tinha dado a vida.

Miserrimos destinos os das regiões da lingua de oc! Confrange-se o coração, comove-se o temperamento mais frio considerando estas ultimas paginas de uma das historias mais gloriosas que viu o mundo!

Civilisação de paz e beleza, as armas e a brutalidade a destruiram. Cultura gerada pela liberdade e pela liberdade mantida, a tirania a aniquilou, o despotismo a oprimiu até completo esmagamento...

Como hiena que ronda as sepulturas e exerce violencia sobre mortos, a infamia do primeiro dos Borbons fez-se forte contra os vencidos. Entrando no vasto labirinto de ruinas que, nas margens de um mar que outr'ora dominára, indicava o lugar onde havia existido Barcelona a bela, os exercitos de Filipe v não julgaram completa a vitoria se a não coroassem com um supremo ultraje á memoria dos que já não eram, á dignidade dos que ainda existiam.

Não os deteve sequêr a atitude heroica dos sobreviventes. Recebidas na tenda do Duque de Bervich, miserandas e cadavericas as comissões catalas apresentaram-se ante o vencedor para lhe pedir respeito pelos velhos foros, consideração pelas leis tradicionaes, e tudo lhes foi negado.

« A causa catala está perdida para sempre; n'esta hora não se trata de discutir privilegios, mas de salvar vidas.» Foi esta a resposta cruel, ferozmente inexoravel que a nova monarquia absoluta deu á velha monarquia federal quando esta se lhe apresentou, algemada e inspirando dó, pedindo clemencia, reclamando piedade.

Não compreendia o marechal francês, filho de uma nação escrava, a conducta de aqueles homens que ante si tinha. Alma pequena, admira-se, pasma-se ao vêr que, esquecidos de si, os filhos da Catalunha em vez de pedirem perdão, de implorarem misericordia, exigiam independencia para a patria, não estando certos eles proprios de que o cutelo lhes não decepasse a cabeça. Olhando-os como revoltosos a quem não reconhecia beligerancia, Bervich julgou insolencia o que era patriotismo; conceituou de falta

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