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Infelizmente não o compreenderam assim os que, uma vez expulsas as tropas napoleonicas, se arvoraram em dirigentes da nação espanhola e nada mais urgente julgaram do que submeter á aprovação regia tudo o que, divorciados da nação e encastelados em teorias plagiarias, lhes aprouvéra votar em côrtes constituintes.

Desejosos de ter uma monarquia constitucional como a que, em circunstancias historicas bem diversas, criaram as forças vivas da nação inglêsa, fizeram vir de França o rei infame que, no exilio e prisioneiro em dourados palacios onde o encerrára a vontade de Bonaparte, entretinha os ocios felicitando o Cezar pelas vitorias verdadeiras ou supóstas que suas tropas obtinham sobre o povo espanhol. E, quando o tiveram em seu seio, quando ouviram o historico chó! com que, como a bestas, o monarca se dirigia aos que, desatrelando os animaes, se tinham posto a arrastar-lhe a carruagem para o conduzir não á masmorra mas ao triunfo, de nada mais trataram que, mercê do regio auxilio, destruir muitos dos materiaes sobre que se poderia edificar algo novo, e implantar, á imitação da França, tudo o que os utopicos com maior ou menos boa fé haviam fantasiado.

Assim se estabeleceu o constitucionalismo em Espanha e, mutatis mutandis, em Portugal. Continuador da monarquia absoluta, animado do mesmo espirito dominador e centralista, tendo o mesmo conceito do Estado Omnipotente, do Estado avassalador e imperialista com os classicos e vastissimos atributos definidos pela jurisprudencia romana, em nada alterou a essencia do sistema politico de ha tres seculos seguidos na peninsula, limitando-se a operar uma mudança de nomes, a substituir as camarilhas pelos partidos de rotação e a fundar sobre a hipocrisia o que antes se baseava sobre a arbitrariedade, pois hipocri

sia é e não outra coisa a farça parlamentar que, sem preparação alguma, se quiz impôr a povos que, pelo seu processus historico, nem a reclamavam, nem para ela estavam preparados.

Ainda, sem duvida, não era chegada a hora de que as coisas se dessem de outro modo. Longe, muito longe dos circulos politicos se haviam de preparar as ideias que, já conhecidas hoje, um dia renovarão a vida peninsular; então dispontavam quando muito; sentiam-nas talvez alguns que, por não as haverem bem profundado, as não podiam formular, e como, grosso modo, na peninsula só havia dois bandos que se degladiavam: os partidarios cegos dos principios da monarquia absoluta e os sectarios fantasiosos de neologismos mal estudados, prevaleceu o desejo de novidade contra a certeza de defeitos por demais conhecidos e proclamaram-se as constituições que, menospresando os organismos de que se compõem os povos, as celulas vivas que formam o corpo nacional, deixaram sem intervenção na vida politica ás classes, aos gremios, aos municipios, ás regiões e até aos individuos, pois de nada serve a vontade individual n'um regimen de maiorias nacionaes e absolutas.

Talvez fosse necessario que assim succedesse; talvez que, continuando uma mesma escola a impôr seu espirito até ás ultimas consequencias n'uma nova variante, tal facto fosse necessario para patentear a inanidade do mesmo esforço empregado em diversas experiencias.

No entanto, emquanto espiritos rotineiros, obedecendo á velocidade adquirida, continuavam esta evolução até ao ultimo termo, até as ultimas consequencias que se ostentam na politica hodierna de todos os paizes latinos, até a actual bancarrota de uma civilisação, da cultura criada pelos humanistas, legis

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tas e quantos escribas a ambição dos despotas encontrou na Europa, dão-se os primeiros movimentos de algo novo e impreciso que já se observa entre nós, ouvem-se os primeiros vagidos da cultura recem naseida que deverá substituir a actual.

Depois dos trabalhos historicos de homens já n'estas paginas mais de uma vez citados, trabalhos conscienciosos que não permitem hoje, nem aos mais leigos, assimilar n'um mesmo conceito os vocabulos << barbaro» e «medieval », inicia-se uma corrente de justiça que, dando a Cezar o que é de Cezar, se curva reverente ante uma epoca mais uma vez o repetimos de sinceridade, originalidade e liberdade, qual a decorrida desde as invasões nordicas até o seculo XIV da era cristă, e vitupera um periodo baseado no plagio, na mentira e no convencionalismo, como é o entremeado entre os seculos xvi e xix, para ir, prenhe de resultados praticos, iniciar não precisamente um retorno á Idade Media porque o que uma vez se foi nunca mais integralmente volta

mas uma aplicação da sua maneira de ser, do seu espirito sincero, original e livre á sociedade moderna e aos tempos actuaes.

Concluida a obra de critica de Guizot, Leo Hürter, João de Müller e seus companheiros que estudam os problemas humanos, não com a fantasia dos pseudo-sociologos do seculo XVIII, mas sobre a experiencia do passado, fonte segura de certeza para o presente, rasgam-se novos horisontes quer na vida preterita, quer na futura dos povos da Europa.

Ainda quando os iniciadores do movimento não cheguem ás ultimas consequencias, não tarda muito a conclusão de que de ha seculos se segue caminho errado e se falsearam as premissas da civilisação cristă.

Compreende-se então que a Renascença, movi

mento artificioso, sobreveio porque os povos se não podiam resignar a dar voltas sobre o mesmo campo, a contemplar sempre o mesmo horisonte. Julgando exgotadas todas as formulas medievaes teriam caído na rotina; e se uma nação, por acaso, pode submeter-se a essa atrofia que paralisa a China, que exgotou Bisancio, uma raça nunca se sujeita assim á morte e, antes que resignar-se a isso, prefere, como a Europa fez, falta de originalidade e de espirito inventivo, caír na imitação do que, por ser extremamente velho, pode parecer novo.

Proseguindo na analise, compreende-se que, quando uma sociedade chega a esta situação, vae sempre para o extremo oposto do ponto em que se encontra. É um fluxo e refluxo inevitavel. Portanto, se a Idade Media tinha sido espiritualista, a Renascença havia de ser uma reacção da carne revoltando-se contra o espirito, e assim vêmos precisamente, quando a espiritualidade atinge o seu mais alto grau, surgir um epicurismo grosseiro mas não sistematico: a Renascença pronunciando as primeiras palavras, tenteando os primeiros passos, a Celestina aparecendo, na literatura iberica, ao lado do Amadis.

E impõe-se, ao chegar aqui, a terrivel certeza da luta de consciencia dos homens do seculo xv dividindo-se entre estas duas correntes, e sofrendo em suas almas combate titanico que alquebrou a rija tempera de Miguel Angelo!os choques da eterna guerra dos dois extremos opostos: o paganismo e o cristianismo, dos dois inimigos de sempre: Cristo e Dionisos, guerra que existindo desde o começo do tempo, ou não terá termo ou concluirá por uma sintese que se afigura dificil porque, para se consumar, é necessario existir no coração do homem uma inocencia tal que lhe permita admirar e gosar da natureza ridente sem distraír a alma da contemplação excelsa.

Não o conseguiram os que assistiram á decrepitude gotica; não o conseguimos nós; não o conseguirão talvez nossos filhos. Ia surgir a epoca que havia de vêr, ao par, Tereza de Jesus e Hurtado de Mendoza; a sintese era impossivel; se a Idade Media se prolongava, a Renascença já aparecera; se a Espanha era ainda medieval, a Italia era já renascente, e a vitoria tinha de ser necessariamente para o que representava novidade.

E foi. Mil causas, que já estudamos, contribuiram para a implantação da reacção pagă, da renascença da carne.

Movimento plagiario, já o dissemos, o quinhentismo impõe-se á moderna critica historica como um mal. Antitese dos esforços que precederam o seu advento, a Renascença era a negação pratica da força que criára a Europa moderna.

E, para se certificarem da verdade d'esta afirmativa, os criticos procedem á comparação dos dois movimentos e, pondo em paralelo a Idade Media e a Renascença, estudam-lhe as origens, indagam-lhe as consequencias.

O sistema feudal devouement libre envers un homme libre qui rend en echange de cette servitude volontaire une protection genereuse - criação barbara que o cristianismo consagrou, foi origem fecunda que, aproveitando os elementos que haviam ficado do mundo antigo, os elementos que as hordas nordicas trouxeram, e os elementos que os arabes introduziram, conseguiu criar um conjunto radicalmente novo. A Renascença, sua oposição, engendro de estudiosos, produto de eruditos, copiando servilmente o que, a não estar minado de incuravel mal, se não teria desfeito, foi muito simplesmente uma mascarada que deve a sua implantação a ter vindo n'uma epoca de renovação necessaria.

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