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mandad os reinos de Leão, Castela e Galiza para a mais eficaz defesa dos mesmos principios que entusiasmavam os vassalos da corôa aragonesa quando forçaram o soberano ao Privilegio da União 1.

E estes, por sua vez, os bravos filhos do Aragão, de Catalunha e Valencia, quando, centralisado o poder cada vez mais em Saragoça, o rei D. João II, casado com Branca de Navarra, se negou, depois da morte de sua mulher, a outorgar aos montanheses das asperas regiões dos Pirineus, a ele não ligados por laço algum, a devida independencia, e, opondo-se aos justos direitos de seu filho Carlos de Viana, se recusou, contra a vontade dos povos, a dar-lhe a corôa de sua mãe, todos se sublevaram, e tomando armas a Navarra e a Catalunha a favor do principe, de certo teriam feito entrar em razão aquele rei pouco escrupuloso que, sem atender as suplicas de seus leaes subditos, se desfazia de reinos como de objectos, áquele rei que não se importava de empenhar grandes territorios catalães ao rei de França e se obstinava em não devolver o que seu não era, se o desterro e a morte prematura do desditoso filho da rainha bearneza não houvessem posto fim á contenda.

Na Castela como no Aragão, uma causa pessoal ocultava e servia de pretexto á explosão das iras do povo; a Navarra e a Catalunha não se revoltavam a favor de Carlos de Viana, assim como a Castela, Leão e Galiza se não moviam a favor de D. Sancho, pelo entusiasmo que as pessoas d'estes principes podessem produzir, pelos direitos que estes principes podessem ter; moviam-se e revoltavam-se, como depois outras vezes succedeu, porque no pretendente á corôa de Navarra e no rival dos infantes de la Cerda, o

Nota XIV, in fine.

sentimento popular via a incarnação, o simbolo de seus desejos; nas suas oriflamas e nos seus estandartes a bandeira de suas liberdades regionaes, das suas autonomias municipaes, das suas dignidades de classe, dos seus direitos pessoaes e civicos.

E como tudo isto que os dois principes, preteridos pela auctoridade paterna, simbolisavam, era o que se encontrava em eminente perigo ante as constantes acometidas do cezarismo renascente no mundo inteiro, de ahi o entusiasmo com que se lançavam ao combate os campeões da insurreição contra João 11.

Todo um passado de glorias estava entregue ao seu valor; seculos de independencia e originalidade; direitos adquiridos em milhares de lutas sobrehumanas; privilegios penosamente arrancados, ou obtidos em conquista por prodigioso esforço de gerações heroicas! Se a sua bandeira fosse vencida era a negação da epopeia das nações ibericas caminhando, espada em punho, das Asturias para o Mediterraneo : era a negação de oito seculos de constante batalhar! E foi o que succedeu: o Principe de Viana, ultimo representante d'uma epoca sem igual, levou para o tumulo os derradeiros ecos e agonisantes fulgores da Idade Media.

...

CAPITULO IX

O advento do cezarismo

E, como um dia belo que acaba em pardacenta tarde de nevoeiro, foi n'um lamentavel crepusculo que se afundou e desapareceu o feudalismo para dar lugar á monarquia absoluta que lhe succedeu.

Nos já longiquos horisontes em que para nós se perdem taes edades, os ultimos tempos do ciclo medieval, todo o seculo XIV e primeira metade do xv,

aparecem como épocas sombrias, que, ao frouxo resplandor das velhas cronicas, se destacam com reflexos sanguineos, cheias de confusões, prenhes de odios, cobertas pela lepra das mais repugnantes paixões do homem.

Poucas flores, poucas virtudes, nenhum feito heroico, nenhuma acção nobre, gesto algum galhardo se destaca no meio de tanta desolação. Se ao lado dos massacres a que assistiu o seculo XIII aparecem, como a dulcificar os horrores da guerra, as candidas e cavaleirosas figuras de São Luiz e Branca de Castela; se como para contrabalançar crimes e maldades surgem de seu seio, aureolado pelo heroico sacrificio de legiões piedosas encaminhando-se para a Palestina, vultos tão admiraveis como o de Francisco de Assis e Domingos de Gusmão; durante este periodo em que agonisa um mundo, só tetricos personagens e sinistras scenas se oferecem, n'um quadro de horror, á contemplação das gerações ulteriores.

Longo cortejo de reis esmagados pelo peso das taras acumuladas durante a vida secular de torpes dinastias; epileticos saciando sua hidropica sede de sangue em carnificinas ingloriosas; cupidez e baixa ambição derimindo seus pleitos nos campos de batalha; vinganças vis, ruins traições, pactos tenebrosos, inconfessaveis vicios, repelentes perjurios, tudo se acumula durante os cento e cincoenta annos que precedem o advento da Renascença, qual se, n'este espantoso estertor de uma sociedade que, morrendo, vae dar á luz um monstro, se houvessem convocado todas as furias do Averno para servir de carpideiras nos funeraes da Idade Media.

Esfacelada a cristandade, sobresaltadas as consciencias, dividida a Igreja, repartidas as opiniões e esquartejado o Pontificado entre Papas e Antipapas; levantado Avinhão contra Roma e enfileirados os mo

narcas e os povos n'um ou n'outro bando; revoltado o clero contra os Bispos e opostas entre si as ordens religiosas, o cristianismo, alma do mundo, parece irremediavelmente condenado a proxima morte.

Importada do oriente a peste e invadida por ela toda a Europa; a morte ceifando vidas, do norte ao sul, do levante ao poente, e contando suas victimas por centenas de milhar; famintas as populações ruraes e assolados os campos pelos salteadores que, aos bandos, como lobos, queimam as casas que saqueiam, destroem os povoados e, fazendo das florestas vastos brazeiros, n'eles queimam as mulheres que violentam, as crianças a quem trucidam e os homens a quem roubam, a loucura parece apoderar-se dos que sobrevivem e correr como um tufão de insania pela Europa inteira, revelando-se nas mais extraordinarias manifestações, nas mais incriveis demencias.

Em luta a Inglaterra contra a França; a braços o imperio bisantino com as hordas orientaes; os suecos e os dinamarqueses trucidando-se; a Bohemia e a Hungria invadida pelos turcomanos; os PaizesBaixos fervendo na mais cruenta e inexoravel das guerras civis; os tartaros ameaçando chegar até Roma, e a Italia dividida entre bandos que se odeiam, se assaltam e se assassinam, não ha um só palmo de terra onde o inerme se encontre ao abrigo da violencia, onde a inteligencia livremente se concentre, onde o espirito goze de paz.

E no meio do estrondo de tantos combates, ao clarão dos incendios, sobre os charcos de sangue e os montões de cadaveres, destaca-se, em Castela, Pedro o cruel, praticando violencias, justiçando sem criterio, assassinando seus parentes e morrendo como um reprobo; surge em Portugal, como emulo do castelhano, chicote na cintura e em companhia do carrasco, arrancando corações e aplicando a tortura por

suas mãos ás victimas do seu real odio 1, Pedro 1, o amante de Inês de Castro; Carlos o Mau reina na Navarra onde seu nome faz estremecer os subditos; e, assim, como n'um diorama, vão passando lentamente, manchados pelo crime, carregados de oprobrio, todos aqueles odiosos personagens que, de Carlos vi de França, imbecil e depravado, a Ricardo 11 de Inglaterra, cruel e insaciavel, servem de modelos aos principes que reinaram em epoca tão desgraçada como a que vae desde a revolta de Sancho o bravo, posto á frente dos senhores castelhanos, até as ignominias de Fernando de Portugal e da barregă Leonor de Telles, desde o dia em que Henrique de Trastamara crava o punhal no rei de Castela até o momento em que Henrique Iv, sofrendo em Avila as maiores injurias, é escarnecido ante o mundo.

E nem um oasis no meio de tão vasta extensão deserta de virtudes; nem um unico ponto, onde repousar a vista, em meio de tanto sangue; nem um momento de calma entremeando taes horrores! Se, alem dos Pirineus, aparece Joana d'Arc condoendo-se da miseranda sorte do reino de França e pondo-se, n'um deslumbramento epico, á frente do exercito que expulsará os inglezes, é para terminar miseravelmente n'uma fogueira, abandonada de todos, por todos atraiçoada; se, n'esta terra de Espanha se levanta com Vicente Ferrer a voz de uma santidade acrisolada, de uma virtude austera, não é como em Assis no seculo anterior, para entoar canticos de mistico entusiasmo, mas para vituperar vicios, denunciar iniquidades, servir de precursora de outra voz mais terrivel: a voz dos ceus chamando os povos a juizo; e,

1 Fernão Lopes: Chronica de D. Pedro, e Duarte Nunes de Leão: Chronica dos reys, tomo 11.

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