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poetas como Pedro Serafi, o terno imitador de Ausias March, e Vicente Garcia, o satirico reitor de Vallfogona, a quem se pode classificar com justiça de Rabelais limosino, mas, a pezar do muito que todos estes nomes representam, não por isso é menos certo que a Castela coube a flor natural nos Jogos floraes da cultura e da ilustração durante os seculos xvi

e xvII.

A influencia provençal cedia á italiana os direitos sobre as letras de Espanha e de Portugal, e enquanto estas iniciavam esse movimento quinhentista de gloriosa memoria que deu á patria portugueza os escritores que mais a sublimaram, aqueles executavam igual evolução.

João de Mena fechára, com o ciclo medieval, o periodo literario de João 11 de Castela, e enquanto o marquez de Santilhana e seus amigos ensaiavam as ultimas imitações da poesia trovadoresca, os tumultuosos acontecimentos do reinado de Henrique IV, dando desenvolvimento consideravel ao espirito critico d'uma nação propensa ao sarcasmo e á ironia, originavam novas formulas literarias que podiam não ser nem tão belas nem de tanta espiritualidade como aquelas a que dera lugar a influencia lemosina, mas que, de todos os modos, tinham a vantagem de ser algo castelhanamente original.

E assim, quando Jorge Manrique entoava o epicedio da Media Idade n'aqueles sentidissimos versos em que com verdadeira e admiravel melancolia se considera a beleza do passado e se chora a saudade em que ficou a alma do poeta depois da morte do rei D. João, do desaparecimento dos infantes de Aragão e de toda aquela brilhante corte literaria que rodeava o pae de Izabel a catolica, já se escutavam as gargalhadas de Mingo Revulgo satirisando as torpezas do pobre rei D. Henrique, e Fernando Rojas

de Montalvan cortava a penna de Cervantes ensaiando na Tragi-comedia de Calixto e Melibea o que pode e a quanto chega a graça espanhola.

Aqui e ali apareciam ainda vozes como a de Diego de San-Pedro recordando na Carcel de Amor uns ressaibos do que outr'ora fôra, mas em geral eram outros os assuntos que se versavam. Juan de la Encina lança, senão os fundamentos do teatro iberico, os fundamentos do teatro castelhano presidindo á evolução dos Misterios eclesiasticos para os autos profanos; Gil Vicente faz o mesmo em Portugal; e enquanto o Auto del repelon, o Antroejo, o Auto da sibila Cassandra, a Rubena, e Don Duardos faziam as delicias das côrtes de Castela e Portugal, outros generos mais graves eram tratados por varões circunspectos.

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Micer Gonzalo de Santa Maria procura imitar Tito Livio na Vida de D. Juan II de Aragon 1; Diego de Almela compõe o Valerio de las Historias; Andrés Bernaldez, mais conhecido por El cura de palacios, escreve a sempre aproveitavel Historia de los Reys; dois italianos ao serviço de Espanha e espanhoes de adopção: Pedro Martyr de Anghera 9, auctor do Opus epistolarum e do Orbe Novo, e Lucio Marineo Siculo, o magistral cronista das Epistolarum familiarium e d'esse trabalho capital que se chama De rebus Hispaniae memorabilibus, muito contribuem, ao lado de Antonio de Nebrija, auctor das Decadas, para desenvolver o estudo do latim na peninsula; Hernando del Pulgar sobrepõe-se a todos

1 Citado por Amador de los Rios: Historia critica de la literatura española, tom. VII.

Veja-se o livro: Pierre Martyr d'Anghera que o professor Mariéjol dedicou a este celebre humanista.

como historiador graças à sua Cronica, e, por fim, enquanto Alonso Ortiz, conego da catedral de Toledo, oferece á infanta Izabel, filha dos reis catolicos, o seu ascetico Tratado de consolacion, e Fr. Iñigo de Mendoza publica El Dechado de la reina doña Izabel, o monge Fr. João de Padilha, isolado no magestoso silencio de uma Cartuxa, compõe El Retablo de la vida de Cristo, primeira pedra, n'este tempo, de uma catedral literaria em cuja construção haviam de colaborar os espiritos mais puros das letras hispanicas, obra que embora não saiba atingir o forte colorido e grandes rasgos que um outro religioso, o portuguez Frei Tomé de Jesus, nos deixou nos Trabalhos de Jesus, se impõe ao nosso respeito por haver sido como o inicio de tantas outras produções que nos terrenos pouco accessiveis da ascetica e da mistica nos legaram genios espanhoes.

Os misticos! São estes a maior gloria da Espanha, porque, sem duvida alguma, são a maior gloria do genero humano as poucas criaturas que, elevando-se sobre a materia, atingiram em raros momentos, os cumes azulados do pensamento e da sentimentalidade terrestre, quando esta já confina com o infinito, quando se eleva a alturas que nem ao talento nem ao genio é dado alcançar.

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E a Espanha teve-os por dezenas. Enquanto outros povos se envaidecem muito justamente - de um ou dois de estes singulares espiritos que em seu seio floresceram, a nação espanhola, meio apropriado para a germinação d'estas orquideas do espiritualismo, poude vêr como a sua cultura se materialisara n'aqueles de seus filhos de quem o Sublime fez seus validos de eleição.

Produto das qualidades das velhas raças hispanicas, fruto dos trabalhos e sacrificios de um povo que, por muitos seculos, procurou a perfeição reli

giosa e que se mirava n'estes seus filhos extraordinarios, considerando-os como obra sua, olhando-os como criação propria, os escritores espanhoes que mais de perto se encontraram em relação com a Divindade, que mais longe levaram a exploração do desconhecido, merecem bem, como glorias de Espanha e elementos para o estudo de seu caracter, um pouco de analise, alguns momentos de atenção.

CAPITULO IV

Os misticos

1

Se, pergunta Maeterlink 1, um espirito superior, um ser de outro mundo mais elevado, uma inteligencia mais familiarisada com os segredos da, humanamente incognita, razão de ser do universo, << viesse a nós e nos pedisse as flores supremas da alma, os titulos de nobreza da terra», nós, pobres criaturas desterradas n'um valle de lagrimas, peregrinos n'uma mansão de dôr, que lhe apresentariamos?

Industrias, ciencias, progressos nas conquistas do homem sobre a materia, esforços titanicos da humanidade á procura do luxo, á procura do bem-estar, que é tudo isto para uma alma? como o apresentariamos, sem provocar compassivo sorriso, ao alto espirito do ser que, obedecendo á lei do bem que, de toda eternidade, foi imposta aos racionaes, só procura a perfeição suprema, a beleza summa?

Altos conceitos, profundos raciocinios, deducções pacientissimamente arquitectadas, calculos prodigio

1 Maurice Maeterlinck: Le trésor des humbles, cap. vii.

samente concebidos, isto ofereceriamos ao espirito superior, á inteligencia excelsa que nos viesse visitar?... Mas que representariam ainda, todos os esforços do cerebro do homem, todo o secular trabalho da inteligencia humana alcançando uma parcela da verdade, da qual, mesmo, não chega a estar bem segura, ante a imaterialidade de quem já infusamente a possuisse?

Ciencia, letras, estudos de caracter, logica, psicologia, metafisica taes como todas estas coisas encaram os mestres ordinarios do pensamento humano, desde Socrates até Hegel tudo é escoria vil, lodo da terra. O que põe o homem em comunicação com o universo, em comunhão com os espiritos superiores que algures existem n'esse vastissimo cosmos, n'esses milhões de planetas que Deus criou, não são os seus esforços para conhecer, pobre verme arrastando-se pelo chão, os despresiveis problemas d'este grão de areia gravitando no infinito. O que o sublima e o enobrece são os poucos e maravilhosos momentos em que excepcionaes criaturas se excederam a si mesmas e, descendo profundamente aos abismo do seu eu, d'esse eu maior que o mundo, superior a toda a criação, pois a toda a criação e a todo o mundo compreende e sente examinaram, estudaram e trataram de desenvolver e aperfeiçoar, aproximando-o do Summo Bem, esse quid divinum: a alma, que, independente da inteligencia e independente da vontade coisas que, apenas um nada mais aperfeiçoadas, o homem compartilha com OS animaes cada um tem em si, e, assim, em misticos deslumbramentos, averiguaram algo, iniciaram-se em misterios que a investigação jamais poderia descobrir.

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Só os misticos podem, pois, ostentar ante os ceus a alta representação da especie humana, porque só o

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