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TERCEIRA PARTE

O Regionalismo iberico

CAPITULO I

O seculo XIX

Recapitulando tudo quanto até aqui dissemos, vêmos, pois, a sociedade europeia, chegando no fim do seculo xvi ao ultimo termo da evolução iniciada pela Renascença: centralisada, escravisada e praticamente paganisada.

Ao fim de dois seculos de dominio cezareo, o Poder Supremo dos povos residindo todo inteiramente na pessoa de um só Homem que, como define um auctor coevo, absoluto no exercicio d'esse poder, não reconhece outro superior que não seja o mesmo Deus, faz as leis e as deroga quando bem lhe parece, e é juiz das riquêsas e da fortuna de seus vassalos, dispensador da justiça e distribuidor das mercês, aparecem-nos mortas as regalias populares

1 Deducção chronologica, obra atribuida ao Marquês de Pombal, §§. 602 e 604.

d'outrora; esquecidas as liberdades tradicionaes dos municipios, das regiões e dos gremios; o despotismo imperando graças ao esforço persistente dos cultores da jurisprudencia romana, teimando sistematicamente desde o seculo xv em a aplicar ás nações cristãs; olvidada e desrespeitada a autoridade do Summo Pontifice; as nações sem um arbitro supremo que presida ás suas relações; o direito internacional sem normas; a força ocupando o logar do direito e os povos sem um tribunal de apelação.

E ao lado de tudo isto que o espirito da Renascença trouxe á Europa, a teoria do direito divino sofismada e introdusida nas nações catolicas por galicanos e jansenistas para justificar os abusos dos reis; o poder espiritual a maior criação social do cristianismo menospresado pelo temporal que, como no tempo dos Cezares, o queria para si e que, para acumular a coroa dos reis com a tiára dos pontifices, tiranisava a Igreja por meio do regalismo; o utilitarismo reinando sobre as rainas da moral; o espirito de imitação imperando sobre a originalidade; a arqueologia ocupando o logar da arte; a sentimentalidade assassinada pelo cientismo.

Desastrosas consequencias teve para a Europa a monarquia absoluta e em miseravel estado a veio encontrar a ultima metade do seculo xvIII!

Atrelada á França pelo pacto de familia que ligava os Borbons de áquem aos de álem-Pirineus, a Espanha singularmente, caminhando como satelite da monarquia francêsa nas orientações que Luiz xiv ou o duque de Choiseul queriam imprimir á politica mundial, tinha decaído, de soberana de meio mundo, em potencia de segunda ordem que a Inglaterra despresava e a Austria tratava com desdem.

Aventurando-se inconsideradamente na proteção ostensiva da revolução dos Estados-Unidos da Ame

rica, preparava

em odio á Grã-Bretanha e para comprazer a França a futura e irremediavel perda de suas colonias de America, e secando assim, proprio-motu, a unica fonte de riquêsa que lhe servia para manter uma va aparencia de prosperidade, condenava-se de antemão a todas as miserias.

Energias não as havia; actividade era coisa de ha muito estinta; industria nem por sombras, e a vida nacional concentrada em volta dos palacios reaes era a de parasita que para existir precisa absolutamente de auxilio alheio, de mendigo alquebrado pela idade que se sente incapaz de qualquer esforço.

Dir-se-ia que a ultima guerra dinastica havia de todo alquebrado as forças da nação espanhola e que, fatigadas as regiões mais fortes pela resolução suprema que haviam tido o valor de tomar em defeza da liberdade, já nem brios ficavam para conservar uma atitude digna.

A propria religião, fonte perene de mascula energia para os povos ibericos, se não tinha desaparecido, havia tomado um caracter inconfundivel e indescritivel proprio do seculo xvIII. Tinha algo de afeminado e de palaciano; mistura de superstição e de rotina, conservava no meio da ganga de muitos adereços falsos a gema pura de uma piedade ardente que mais tarde se havia de manifestar nas classes populares em criticos momentos, mas dirigida por um clero em geral supinamente inorante e inconsciente que Fray Gerundio de Campazas, brotando da penna sarcastica e bem afiáda do Padre Isla, perfeitamente simbolisou, tinha todas as caracteristicas d'aquela fé morta de que fala São Paulo, crença ininteligente e sem obras, culto automaticamente seguido e não sentido.

Não em vão o absolutismo se havia estendido até esta região vedada a influencias humanas. Con

cluida uma obra de seculos que começa na abusiva usurpação dos méstrados das ordens militares e acaba no rompimento de Filipe v com a côrte de Roma, o regalismo dominava sem peias em materia religiosa. O clero, subordinado difinitivamente ao trono real, atento sómente á adulação mesquinha de aquele que por « direito divino » o ocupava e á observancia das ordens dos que em nome do rei governavam, haviase apartado pouco a pouco das orientações democraticas a que deve obedecer no exercicio de seu ministerio. O luxo e a ostentação, antitese do espirito evangelico mas cortejo necessario do palacianismo, acompanhavam-no, e, assim as coisas, pouco era de estranhar que se vissem os espectaculos ignominiosos que então se deram: ordens religiosas aristocratisadas e separadas de seus irmãos de alem-fronteiras, com vigarios nacionaes que, levando vida de principes e gosando das honrarias dos proceres, as governavam; prelados e ministros que nas ante-camaras palatinas se esqueciam da existencia da plebe ou só d'ela se recordavam para lhe propinar ensinamentos farisaicos e desesperantes, como eram todos os que, eivados do espirito de Port-Royal, se repetiam pela Europa.

Fechadas muitas escolas, decadentes todas, não se assinala um movimento intelectual digno de respeito. A literatura decae e arrasta vergonhosa vida; a ciencia reduz-se a erudição sem critica; a arte tem por ideal o grotesco e o monstruoso, e, assim as coisas, nem um só homem surge, no meio de tanta desolação, que faça falar da Espanha nos paizes que, postos os olhos n'ela, antes a copiavam.

Em Portugal a situação não era melhor. Se a influencia francêsa diplomaticamente havia decaído em tempo de D. Pedro II, substituira-a a inglêsa e, internacionalmente tão dependentes os portuguêses

como os espanhoes de influencias exoticas, parecia que, confiando em mãos estranhas o encargo de pensar e dirigir a vida nacional, se concentravam na preocupação unica de admirar tanto quanto possivel o esplendor real, a ostentação de que se rodeava a monarquia em Queluz ou Salvaterra, na Granja ou em Aranjuez.

E em Lisboa ou em Madrid a vida era a mesma. Torpe fanatismo dominando as consciencias, se a Beata Clara só intrigava na côrte de Espanha, não faltavam << piedosos » conluios na de Portugal para com a mesma mascara conseguir identicos fins, e se os escandalos de Odivelas, os desperdicios de Mafra, as excurções noturnas do rei D. José, a existencia dos Meninos de Palhava e outras vergonhas caracterisavam os ultimos tempos do poder absoluto em Portugal, o favoritismo de que gosava Godoy, feito Principe da Paz pela vontade de uma rainha, as visitas de toureiros ás alcovas reaes, e a repugnantissima figura do mau filho, mau marido, mau pai, mau irmão e pessimo e vilissimo rei que se chamou Fernando VII, sujam com a mesma lama, mancham com a mesma infamia as mesmas páginas da historia de Espanha.

No rebaixamento de caracteres que, como consequencia necessaria, se seguiu aos habitos de adulação impostos pelo cezarismo, o espectaculo que oferecem os dois Estados ibericos é igual durante o desmanchar de feira com que se inicia o seculo XIX, n'uma epoca que, estigmatisada pela mais completa e absoluta das traições feita á maneira de ser de uma raça, representa a antitese dos seus tempos de maior gloria, o extremo oposto nas suas ideias sobre a realêsa, sobre politica, sobre religião, sobre tudo, distinguindose pela tirania e vilêsa e terminando pela identica ignominia de reis que, dispondo dos povos como pro

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