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que duas sortes de homens ou contentes e soberbos, com os favores e premios conseguidos, ou por dinheiro, ou por particulares respeitos, ou descontentes e humildes, com o desengano de lhes não haverem de aproveitar seus virtuosos merecimentos, e o sangue com gosto derramado em serviço de sua patria. Crescia este desgosto o saberem que o rei, que os devera de honrar e de animar com palavras e com mercês, os despresava, chamando falta de valor ao que era falta de gosto de se verem trabalhar para outrem, levando-se-lhes a honra e o proveito.

«... Encorporou-se na fazenda real o rendimento das terças dos bens dos concelhos que os povos concederam para fortificação e reparɔs dos castelos e seus muros, gastando-se em outras coisas em que se não podia dispender, dando causa a que os muros e castelos de todo se arruinassem, deixando-nos de todo abertos e desarmados, e expostos aos incursos dos inimigos, atendendo só a nos desarmarem, e se segurarem de nós, estimulados contra suas tiranias. Quanto era maior o temor da injustiça, tanto era maior o aperto em que nos punham.

«< Experimentamos estes de todo o modo e em todas as coisas, e por todas as vias. Os juizes castelhanos julgavam e procediam contra os portuguêses que se achavam em Castela e nos mais reinos de sua coroa, e os castelhanos em Portugal tinham juizes castelhanos. Pedia toda a razão que fosse o privilegio e justiça igual, e não tão desigual e afrontosa quando se mandava devassar de algum caso cometido n'este reino por portuguêses e castelhanos juntamente pagavam os gastos e custas dos ministros castelhanos os portuguêses culpados. Pôrem os castelhanos culpados eram remetidos a seus juizes que logo os soltavam, e os deixavam sem castigo algum, com grande magoa e sentimento dos ofendidos, padecendo os portuguêses a condenação dos gastos e das penas corporaes, segundo era o delicto; eles ficavam livres de uma e outra, e confiados para cada dia cometerem outros delictos que não assombra a culpa aos que a pena não acautela: a isto se acrescentava inventarem una companhia de São Diogo, em que estavam matriculados os homens de toda a sorte, que por qualquer via descendiam de castelhanos, para que gosando dos privilegios que se lhe concederam se não extinguisse o nome castelhano entre nós, e os portuguêses ficassem mais molestados e cansados.

« Nada ficou que em nosso damno e afronta se não tentasse; e porque não só padecessemos aflicção nos corpos,

se nos ordenou para as almas. As duvidas que os ministros d'este reino tinham com o coleitor de Sua Santidade não eram mais que uma forja em que se consumiam, e se consultava sobre elas o Conselho de Castela, nem se lhe respondia, nem os deixavam resolver: se sentenciavam em favor da Igreja os privavam dos seus cargos, molestavam e desfavoreciam; se julgavam contra Ela, segundo as opiniões que tinham por mais certas, segundo as leis e estilos em que se fundavam, eram afligidos com excomunhões em que estavam dois, tres, e mais annos, padecendo o povo interdictos particulares e geraes, sem assentarem coisa certa que se devesse seguir, nem darem remedio algum a tanto mal.

« Toda esta maquina de injustiças, e de tributos, de em· prestimos pedidos, imposições, apertos e vexações topava em se dar cumprimento aos capitulos d'aquele pesado Conselho, tenção manifestada, injusta e inconsideradamente por boca do mesmo rei, que devera, pelo que lhe convinha, e pelo que de justiça nos devia, de trabalhar com toda a ancia e cuidado de nos têr satisfeitos e contentes, e com a satisfação e contentamento obedientes e alegres para seu serviço.

«Achava-se no principio de seu governo um dia, só com o Conde-duque, e rompeu n'estas palavras: «Que faremos com estes portuguêses, não acabaremos com eles de uma vez?» O valido, que fabricava em seu desvairado pensamento fazer de todas as partes de Espanha, um todo lhe respondeu: deixe-me V. M. isto á minha conta que eu lh'a darei d'eles. » Cego e imprudente que não via ser impossivel contrariar a vontade de Deus, que na diferença das linguas manifestava a diferença dos reinos e das vontades! Manifestou esta pratica um Grande, de que então se não acautelaram pela distinção da idade.

« D'esta declaração desordenada nasciam as mudanças dos ministros e dos governos. Buscava-os o valido iguaes a seus pensamentos, conformes á sua vontade; tocava-os na pedra da sua experiencia : achava-os desiguaes, e não todos para o que pretendia, mudava-os, variava-os, engeitava-os; que como atenção era encoberta, os mais d'eles enganados com as apariencias da medrança, atendiam mais o seu aumento que a conservação da patria, reparando-lhe ás vezes em lanços e resoluções, que tinham por alheios da razão e da justiça, ainda que fossem consentindo em alguns golpes, que lhes não pareciam mortaes. E ele, que ambicioso da brevidade, buscava quem lhe facilitasse os desejos, mudava

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e despresava os que em alguma coisa lhe faltavam áquela malevola execução de vontade. Deparou-lhe a sua desgraça, e a nossa dita, um Diogo Soares, feito de molde para o que pretendia, sagaz para enganar, humilde para obedecer, ambicioso para aspirar e contentar em tudo quanto se lhe propunha, malicioso para arguir nossos damnos. Este ocupou na secretaria do Conselho de Portugal, que residia em Madrid. Para que jogassem fechados, tomou por companheiro e respondente na secretaria de Estado d'este reino a Miguel de Vasconcellos, ligado com ele com os dobrados parentescos de cunhado e sogro, homem por seus vicios despresado de todos, por natureza soberbo, e despresador dos nobres e perseguidor dos menores. Un e outro poseram a mira em se vingar da morte violenta dada a seu pai e sogro, por alvitres que contra o povo inculcou, em segurarem sua medrança com se não saírem do que o valido queria, atendendo a lhe advinhar os pensamentos, e os fazerem executar ainda antes de declarados; entendiam-se para isso entre si com particulares avisos, ajuizavam o natural dos pretendentes, pelo desvio ou consentimento que n'eles achavam para o que traçavam; aqueles que experimentavam de seu humor, favoreciam, honravam e acrescentavam, ficando por fiadores ao valido a quem grangeavam e agradavam com as vendas dos cargos, honras e dignidades que lhe faziam ; aos que com mais liberdade e isenção tratavam de si, encontravam, perseguiam e despresavam; e como estavam as portas fechadas ao recurso da justiça, tudo caminhava a nossa perdição.

« Para que este designio lhe saísse mais certo, trataram de entregar o governo d'este reino, atropelando toda a consideração do bem publico, á Duqueza de Mantua, que nem era pessoa das compreendidas nas capitulações juradas; acompanharam-na de conselheiros castelhanos, não naturaes do reino, quaes os requeriam nossos foros, para que faltando n'ela e n'eles aquele amor natural da patria, não reparassem os golpes que sobre nós caíssem. Seguravam seu intento com a Duqueza, em os conselheiros estarem dependentes do arbitrio de quem os elegeu, com que se lhes tirava a liberdade dos votos, ainda nas coisas mais convenientes ao credito e reputação do seu rei. Amavam tanto a perdição do nome e reputação d'este reino que reconhecendo-o exausto de dinheiro, não reparam na multiplicação dos gastos, que com estes ministros se fazia, maiores que com todos os mais; nem lhes ia a mão na publicidade com que vendiam quanto meneavam, porque ajudava seu intento.

<< Traçaram mais, que os votos do conselho se dessem em segredo e fechados, para que não sabendo uns dos votos dos outros, cuidassem que fora votado o que vissem injusta e tiranicamente respondido: via com que Diogo Soares e o valido, se fizeram senhores absolutos do governo, e despachos do reino, e estes parentes mais temidos e respeitados.

<< Obrigaram os procedimentos d'estes homens a que alguns ofendidos dessem capitulos de Diogo Soares, dignos de grande castigo, se se guardára justiça; mas confiado no favor do Conde Duque, alcançou não saír de Madrid enquanto se tratava d'eles, termos contrarios aos que se usava com as pessoas de quem eles faziam devassar. Contrastou ele esta tormenta com testimunhas, que o poder lhe facilitou, chegando a enganar com esperanças aqueles a quem queriam acabar. Veja-se sua traça e seu poder. Pendia seu bom successo de assistir em Madrid um religioso e se tirar outro e porque seus superiores, por causas que para isso tinham, lhes denegavam licença, maquinaram o que contém esta carta, que se decifrou das que se acharam no escritorio do Deão de Braga, irmão de Miguel de Vasconcellos; os termos da carta mostram o animo de quem a escrevia, e a verdade com que nos negocios procedia.

« Galante homem é V. M., que cuidava que me havia de descuidar em abrir os massos de N. Rodriguez; porém ele é tão precatado ao filho do fisico não vae no geral, que manda por via de Martim de Figueiredo, e assim será grande coisa o amigo M. colher este masso; principalmente que esteve o F. fechado com este vilão toda a tarde de hontem, pelo que faça V. M. esta diligencia logo, que será uma das coisas que mais importa. Se o Provincial não deitar d'aqui este vilão, S. Magestade o mandará botar fóra com grande ignominia da Companhia, e para obrigarmos a que mande o M, que é amigo, como nosso irmão estiver na secretaria, irá uma ordem do raio; em que se comece a abolir, em que não haja tantos estudos, e logo os ha de desinquietar, e com isto se dirá ao Provincial, que mande o Padre M., e que ele aquietará a materia, e assim se espera que veja a diferença de ter aqui procurador amigo, ou não. Porém, por ora nem ao M. revele V. M. isto, e só lhe diga, que muito cedo haverá ocasião em que os roguem. Saberá V. M. que um Padre da Companhia que aqui está, estrangeiro, que se chama Ugo, amigo do Padre N., me descobriu uma traição, que Francisco Rodrigues me fêz com José Gonçalves; que fingiu o Ugo uma carta, que escrevia ao Provincial d'este

reino dando-lhe conta dos maos procedimentos d'esse N. e do que alevantava. A qual carta disse eu ao visitador que de lå se mandára, e porque se suspeita que o Ugo m'a deu, me escreva V. M. uma carta, em que me trate coisas que eu possa mostrar, dizendo-me que lhe mande aquela carta, que fiaram de V. M., porque o Padre que lha deu o mata por ela, para por aqui se entender que V. M. m'a mandou, e se lá fizerem deligencia com V. M. sobre isto, nem confesse, nem negue, porque os Padres pode ser que queiram fazer deligencia para apurarem isto: diga V. M. ao secreto, que por ele tenho mandado dizer ha muitos dias ao provincial, que tire d'aqui N. o que não quiz fazer e que agora faz este velhaco o que refiro na carta, e que depois se não queixe de mim. Nunca faço pouco caso de nada, ainda de coisas que parecem disparates, como é que nos hão de tomar as cartas e assim sou de parecer, que todo papel ou carta que tiver nosso irmão, que em alguma coisa lhe possam prejudicar, se fôr necessario guardar-se, se tenham em um escritorio em casa de V. M., porque estes velhacos andam tão insolentes e esta princêsa não tem mais lei que a razão de Estado, podem-lhe meter em cabeça que ha alguma falsidade nos papeis da secretaria, e debaixo de apurar isto, tomarem os papeis para ver se podem colher alguma coisa; e assim tenho por mui necessaria esta prevenção, e V. M. faça fazer isto ao nosso irmão, que eu sem temer isto o hei de fazer cá. »

« Julgue-se o que conteriam as cartas, que assim se encobriam, e a fidelidade d'estes ministros.

<< Pois que se não obraria por pessoas que se carteavam em segurança de seus enganos? Na carta de 19 de Janeiro de 1639 em que Diogo Soares diz a seu cunhado e genro Miguel de Vasconcellos entre outras coisas: «Dos Cezares não ha que tratar que esta gente não tem aqui amigos nem ha que fiar d'eles, porque todos são uns, e filhos do pai que vós conheceis e a quem meu amo não sofre. » Em outra de 13 de Abril de 1640 escreve, o que leva a boia ao fundo: « Aos N. N. engana-los, e cavalgar-lhes as parentas, » É forçado repetir palavras tão encontradas com a pureza dos costumes, para que se conheça bem qual era o governo de homens, que se ensinavam uns aos outros a ser maus.

<< Reconheceu o reino todo tanta malicia, tanta injustiça e tirania. Reconheceu seu estado e o abatimento de suas glorias que as armas, com que deu no mundo tão espantoso credito a seu valor, se lhe negavam, e tiravam das mãos, por lhe tirarem juntamente com o nome, a reputa

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